Um ciclo intervalar é uma estrutura musical gerada pela repetição sucessiva de um intervalo fixo dentro de um sistema de classes de alturas – como o sistema de 12 tons iguais usado na música ocidental. Um ciclo intervalar é produzido somando-se iterativamente um intervalo a uma nota inicial até atingir esta nota outra vez. Um exemplo muito simples é a escala cromática, tocada nota a nota ascendentemente. Ela é produzida pelo ciclo intervalar de um semitom: C C# D D# E F F# G G# A A# B C.

No sistema temperado de 12 tons é possível gerar 11 ciclos utilizando intervalos simples:
Ciclo de segundas menores – 1 semitom: C C# D D# E F F# G G# A A# B C
Ciclo de segundas maiores – 2 semitons: C D E F# G# A# C
Ciclo de terças menores – 3 semitons: C Eb Gb A
Ciclo de terças maiores – 4 semitons: C E G# C
Ciclo de quartas justas – 5 semitons: C F Bb Eb Ab Db Gb B E A D G C
Ciclo de quartas aumentadas – 6 semitons: C F# C
Ciclo de quintas justas – 7 semitons: C G D A E B F# C# G# D# A# F C
Ciclo de sextas menores – 8 semitons: C G# E C
Ciclo de sextas maiores – 9 semitons: C A F# Eb C
Ciclo de sétimas menores: C Bb Ab Gb E D C
Ciclo de sétimas maiores: C B Bb A Ab G Gb F E Eb D Db C





Observe que os ciclos de 11, 10, 9, 8 e 7 semitons podem ser pensados como versões de trás pra frente (ou seja, retrógradas) dos ciclos de 1, 2, 3, 4 e 5 semitons respectivamente. Optei por notá-los como um intervalo ordenado ascendente para destacar algumas propriedades deles que serão relevantes mais tarde. A exceção é o ciclo de 11 semitons, que ocuparia uma quantidade muito grande de oitavas (de fato, maior que a tessitura do piano) e optei por notar como um ciclo de segundas menores descendentes.

Assim, em certo sentido, temos na verdade seis famílias de ciclos que contêm, cada uma, à exceção do ciclo de seis semitons, uma versão ascendente uma descendente de uma classe de intervalo: um semitom (segundas menores e sétimas maiores), um tom (segundas maiores e sétimas menores), um tom e meio (terças menores e sextas maiores), dois tons (terças maiores e sextas menores), dois toms e meio (quartas e quintas justas) e três tons (quartas aumentadas – que não são inversíveis). Dependendo do contexto e do propósito, fará mais sentido pensar os ciclos intervalares de um ou de outo modo, o que explicarei mais detalhadamente adiante. No momento – e antes de considerar cada ciclo individualmente – quero destacar algumas qualidades gerais dos ciclos intervalares.
Qualidades gerais dos ciclos intervalares
Todos os ciclos intervalares possuem algumas qualidades comuns que os tornam, no geral, interessantes. Em primeiro lugar, todo ciclo intervalar repete-se após uma quantidade específica de oitavas e, portanto, divide esta quantidade de oitavas em partes iguais. Alguns ciclos dividem uma única oitava em uma quantidade de partes antes de repetirem-se. Chamarei estes de ciclos oitavantes. No sistema temperado, estes são os ciclos de segundas menores (doze partes), segundas maiores (seis partes), terças menores (quatro partes), terças maiores (três partes) e quartas aumentadas (duas partes).
Um segundo conjunto de ciclos são os ciclos que repetem-se após mais de uma oitava que chamarei de ciclos não-oitavantes. Estes ciclos dividem uma quantidade maior de oitavas em uma quantidade de partes. No sistema temperado, estes ciclos são os ciclos de quartas justas (cinco oitavas em doze partes), quintas justas (sete oitavas em doze partes), sextas menores (duas oitavas em três partes), sextas menores (três oitavas em quatro partes), sétimas menores (cinco oitavas em seis partes) e sétimas maiores (onze oitavas em doze partes).
Em segundo lugar, como divide um espaço de notas (n oitavas) em partes iguais, todo ciclo é simétrico e, portanto, não possui, a priori – uma hierarquia tonal. Isso é, não é possível determinar uma tônica do ciclo pois todas as notas dele possuem a mesma gravidade tonal. Isso nos leva a terceira qualidade: o ciclo possui transposições limitadas, ou seja: uma quantidade limitada de transposições do mesmo ciclo antes de obtermos o mesmo resultado. Por exemplo, o ciclo de quatro semitons possui quatro transposições possíveis: C E G# | Db F A | D F# A# | Eb G B. A próxima transposição (E G# C) é idêntica à primeira (C E G#), mas começando em E em vez de C. Como os ciclos não possuem tônica começar em C ou E é indiferente, exceto pelo registro em que as notas ocupam, de modo que eles são o mesmo ciclo.

Cada transposição de um ciclo intervalar cria um conjunto único de notas sem interseções com outras transposições, de modo que a combinação de todas as transposições diferentes de um ciclo gera a escala cromática sem repetir nenhuma nota.
Por fim, os ciclos possuem relações uns com os outros, de modo que cada um pode participar ou gerar os outros ciclos. No exemplo acima, por exemplo, as quatro transposições do ciclo de terças maiores geram a escala cromática, que pode ser expressa como um ciclo de um, cinco, sete ou onze semitons. No exemplo abaixo, o ciclo de quartas justas (c5) foi construído sobre o ciclo de sextas maiores (c8).

A relação entre cada ciclo e a escala cromática gera um caminho para relacionar um ciclo ao outro e aninhar cada ciclo dentro da escala cromática, mas há outras relações entre eles que exploraremos na próxima seção.
Um pouco mais sobre cada ciclo
Além das qualidades gerais dos ciclos, cada ciclo possui qualidades próprias que os tornam especificamente interessantes. Nesta seção, apresentarei um pouco sobre cada ciclo, suas qualidades e relações com os outros ciclos. Por simplicidade começaremos com os ciclos oitavantes.
O ciclo de segundas menores divide a oitava em doze partes iguais e é o único ciclo não-oitavante que possui todas as notas da escala cromática e somente uma transposição. Isso quer dizer que as notas resultantes do ciclo são as mesmas independentemente de sobre qual nota construirmos o ciclo. Para pensar ciclicamente, este ciclo é pouco útil, mas ele pode ser usado de maneira truncada (isto é só parte dele) para estruturar progressões axiais – sequências de acordes, geralmente da mesma qualidade, seguindo um ciclo intervalar – ou para ornamentações. Todos os outros ciclos são versões truncadas dele.
Ciclo de um tom
O ciclo de segundas maiores divide a oitava em seis partes iguais, possui duas transposições e algumas relações dignas de nota com todos os outros ciclos. Em primeiro lugar, as famílias de ciclos de quatro e seis semitons são versões truncadas dele e ele pode ser pensado como uma combinação de ambas: um ciclo de quatro semitons construído sobre cada nota do ciclo de seis semitons ou um ciclo de seis semitons construído sobre um ciclo de quatro semitons.


O ciclo de quintas – e consequentemente a escala cromática – pode ser pensado como uma combinação das duas transposições do ciclo de segundas maiores. Se tocarmos o ciclo de quintas como uma quinta ascendente e uma quarta descendente, a sequência de notas mais agudas forma uma iteração do ciclo de segundas menores e a sequência de notas mais graves forma a outra iteração.

Combinando partes dos dois ciclos é possível criar uma passagem totalmente cromática com a melodia seguindo uma transposição do ciclo e o acompanhamento seguindo outro. Isso mantém a sonoridade de tons inteiros, mas resulta num ambiente mais cromático. Também é possível formar acordes extraindo as vozes superiores de uma iteração e as inferiores de outra.
O pianista e educador de jazz Barry Harris desenvolveu uma teoria fascinante que explora essa propriedade do ciclo de tons inteiros. De forma poética, ele descreve a escala cromática como o todo ou deus, e as duas escalas de tons inteiros como um casal que gera filhos. Esses filhos são acordes formados pela combinação de pares de trítonos retirados de cada escala. Por exemplo:
- De uma iteração da escala (C, D, E, F#, G#, A#), extraímos C e F#.
- Da outra iteração (C#, D#, F, G, A, B), extraímos Eb e A.
- Juntas, essas notas formam um acorde diminuto (C-Eb-F#-A).
A partir desse acorde diminuto, Harris demonstra como transformar as notas para gerar os outros acordes básicos de sua teoria:
- Acorde dominante: Baixe qualquer nota do acorde diminuto por um semitom.
- Exemplo: Baixando Eb para D em C-Eb-F#-A, obtemos D7.
- Acorde menor com sexta maior: Suba qualquer nota por um semitom.
- Exemplo: Subindo F# para G, obtemos Cm6 (ou Am7b5 em outra inversão).
- Acorde maior com sexta maior: Baixe duas notas consecutivas.
- Exemplo: Baixando C para B e Eb para D, temos D6 (ou Bm7 em inversão).
- Acorde dominante com quinta diminuta: Suba ou baixe quaisquer duas notas não consecutivas.
- Exemplo: Subindo Eb e A, temos C7b5; baixando, temos D7b5.
Embora o foco deste texto não seja a teoria de Barry Harris, sua abordagem ilustra uma ideia poderosa: extrair subconjuntos (díades, tricordes, etc.) de diferentes iterações de um ciclo para criar acordes e texturas. Não explorarei aqui os acordes específicos que poderiam ser gerados com essa técnica, mas, caso haja interesse, posso apresentar uma explicação detalhada em outra publicação.
Ciclo de três semitons (sesquitom)
O ciclo de três semitons forma o familiar acorde de sétima diminuta que já discutimos parcialmente nos parágrafos acima. Este ciclo possui três transposições e o ciclo de seis semitons é uma versão truncada dele. O ciclo de quartas justas (5 semitons) pode ser dividido em três vozes com cada uma seguindo uma transposição do ciclo distando uma quarta justa entre si ou como quatro tricordes quartais construídos sobre o ciclo de terças menores.

Uma derivação interessante do ciclo de três semitons é a escala octatônica ou segundo modo de transposição limitada. Ela é formada pela combinação entre quaisquer duas transposições deste ciclo, possui, assim como o ciclo de três semitons, três transposições e uma estrutura simétrica. Esta escala também pode ser gerada removendo uma transposição deste ciclo da escala cromática, ou seja, a escala octatônica é o complemento cromático do ciclo de três semitons.

Ciclo de quatro semitons (ditom)
O ciclo de quatro semitons é idêntico ao acorde aumentado. Este ciclo possui quatro transposições e é um subconjunto do ciclo de dois semitons (que pode ser formado por dois ciclos de quatro semitons distando uma segunda maior ou uma quarta aumentada). O ciclo de quintas justas (7 semitons) pode ser dividido em quatro vozes, cada uma seguindo uma transposição do ciclo ou como quatro três tetracordes quintais construídos sobre as notas do ciclo.


Ele pode ser combinado mesmo pra formar três escalas diferentes: a hexatônica aumentada, a escala de tons inteiros e o terceiro modo de transposição limitada (Terceiro M.T.L. na imagem abaixo). Combinando um ciclo com o ciclo um semitom acima ou abaixo geramos a hexatônica aumentada; dois tons acima ou abaixo geramos a escala de tons inteiros. Combinando quaisquer três transposições, geramos o terceiro modo de transposição limitada – que também pode ser gerado removendo uma transposição do ciclo de 4 semitons da escala cromática, ou seja: o terceiro modo de transposição limitada é o complemento cromático deste ciclo.



Ciclo de seis semitons (tritom)
O ciclo de seis semitons possui duas notas consistindo somente num trítono. Ele é um subconjunto dos ciclos de um, dois, três, quatro, cinco, sete, nove, dez e onze semitons e possui seis transposições. A princípio, este ciclo, consistindo de somente duas notas razoavelmente distantes, parece, em si, de pouco interesse; mas gostaria de levantar uma observação realizada por Olivier Messiaen em Técnica de Minha Linguagem Musical:
“Um ouvido muito apurado percebe claramente um Fá sustenido na ressonância natural de um Dó grave. Esse Fá sustenido possui uma atração em direção ao Dó, que se torna sua resolução natural. Estamos diante do primeiro intervalo a ser escolhido: a quarta aumentada descendente.” (Messiaen, 1944, p.31)
E é curioso notar: ele realmente usa a quarta aumentada como resolução melódica ou como o enquadramento dentro do qual a progressão se dá. Exemplos simples podem ser encontrados na voz de Poèmes pour Mi, no primeiro movimento Les Corps glorieux (exemplo citado por ele mesmo no livro) e em basicamente qualquer melodia dele.
O ciclo de seis semitons se torna mais interessante para a nossa discussão, entretanto, quando pensamos na combinação das 6 diferentes transposições que ele possui: de todos os ciclos ele é o que gera a maior variedade de estruturas quando combinado com suas transposições.

Para nomear essas estranhas formações, utilizarei a classificação de conjuntos da teoria pós-tonal criado por Allen Forte. Detalhar esta nomenclatura, a lógica os números de Forte e as outras práticas da teoria de conjuntos pós-tonal ficará para outro momento. Para este texto, só utilizarei a classificação para dar algum nome a essas estruturas. O importante é saber que ela é uma estrutura a-b onde a é o número de notas na estrutura e b é um ordenamento da lista. Por exemplo 5-35 – o equivalente na teoria de conjuntos da coleção pentatônica – é o trigésimo quinto conjunto dos conjuntos de cinco notas na lista de Forte. Alguns conjuntos possuem ainda uma notação extra: A ou B, onde A é a forma primária e B é a forma invertida.
Há três resultantes possíveis da combinação de duas transposições do ciclo de seis semitons, todos os três simétricos. O primeiro, que resulta da combinação de um ciclo com outro ciclo a um semitom ou cinco semitons de distância, poderia ser interpretado como um acorde quartal construído por uma quarta aumentada, uma quarta justa e uma quarta aumentada. Seu número Forte é 4-9 e ele é um subconjunto da escala octatônica. O segundo, que resulta da combinação de um ciclo com outro ciclo a dois ou quatro semitons de distância, pode ser interpretado como um dominante com quinta diminuta.eu número Forte é 4-25 e é um subconjunto da escala de tons inteiros (ciclo de segundas maiores) e do terceiro modo de transposição (que discutimos anteriormente neste texto). O terceiro, que resulta da combinação de um ciclo com outro a uma terça menor de distância, forma o acorde de sétima diminuta (ciclo de terças menores) que discutimos anteriormente neste texto. Seu número Forte é 4-28.



Há quatro resultantes da combinação de três transposições do ciclo de seis semitons. Três ciclos separados por semitom geram o conjunto 6-7, o quinto modo de transposição limitada de Messiaen. Este conjunto pode ser pensado como dois tricordes quartais separados por um trítono – ou, em outra inversão, como dois acordes suspensos separados por um trítono.

Três transposições do ciclo de seis semitons separados por um tom geram a escala de tons inteiros que já discutimos (6-35). As duas últimas combinações (6-30A e 6-30B) são peculiares: elas não são simétricas e, portanto, são inversíveis, sendo uma inversão da outra.

Por inversão uma da outra quero dizer que elas possuem o mesmo padrão intervalar, mas em um caso ascendente e em outro caso descendente. As tríades maiores e menores, por exemplo, são inversão uma da outra – no sentido pós-tonal de inversão, que não deve ser confundido com o sentido tonal de inversões de um acorde. Começando em dó e ascendendo três e depois quatro semitons temos C Eb G – a tríade de dó maior; descendo três e depois quatro semitons temos C A F – a tríade de Fá menor. No caso de 6-30, o padrão é 1, 2, 3, 1, 2 semitons ascendentes no caso de 6-30A e descendentes no caso de 6-30B.

Interessante notar que 6-30 (A e B) são subconjuntos da escala octatônica, cabem dentro de um intervalo de nove semitons – ou seja, podem estar interpolados em um ciclo de sextas maiores – e podem ser gerados por duas tríades (menores no caso de A, maiores no caso de B) distando seis semitons. Stravinsky, em Petrushka, utilizou regularmente 6-30B tocado como duas tríades maiores.

A combinação de quatro transposições do ciclo gera 3 conjuntos (8-9, 8-25 e 8-28), que, não coincidentemente, são os complementos cromáticos das combinações de 2 ciclos (4-9, 4-25 e 4-28). Os três também são, respectivamente o quarto, o sexto e o segundo modos de transposição limitada.



8-9 possui seis transposições, repete-se idêntico sobe o trítono e pode ser pensado como a combinação de dois acordes de sétima maior distando um trítono. 8-25 também possui seis transposições e pode ser pensado como uma combinação de dois acordes menores com sétima maior construídos sobre c6. 8-28, por fim, possui 3 transposições e pode ser pensado como uma combinação de dois tetracordes diminutos (c3).
Por fim, há uma combinação de 5 transposições do ciclo de 6 semitons: 10-6, o sétimo modo de transposição limitada. Ele é gerado pela única forma de combinar as 5 transposições: sobre uma sequência de 5 semitons ou substraíndo uma transposição do ciclo de seis semitons da escala cromática. Duas características me chamam atenção: em primeiro lugar, ela contém tanto da escala de tons inteiros (ic2) quanto da escala octatônica (combinação de dois ic3) – e consequentemente os outros subconjuntos que discutimos em relação ao ic6; em segundo lugar, ela pode ser pensada como uma combinação de duas escalas pentatônicas distando um seis semitons.

A segunda qualidade, em especial, é útil porque essa resultante é tão cromaticamente saturada que é de pouca utilidade para pensar escalarmente ou ciclicamente, a menos que possamos construir outras lógicas sobre ela; e.g.: pensá-la como uma pentatônica sendo transformada por ciclo de seis semitons. No exemplo abaixo, abri as pentatônicas como dois acordes cuja sonoridade me agrada e circulei eles pelo ciclo, buscando abrir cada resultante seguindo um padrão ascendente e com movimento de vozes por grau conjunto. O resultado é uma harmonia meio quartal, mas bastante cromática.

Ciclos não-oitavantes
Os ciclos não-oitavantes gerados por intervalos simples possuem uma relação direta com os ciclos oitavantes: à exceção dos ciclos de quarta e quintas justas (que são inversão um do outro e são ambos não-oitavantes), eles contém as mesmas notas dos ciclos oitavantes da mesma família de ciclos, mas retrógrados (tocados de trás pra frente). Isso porque, ainda que sejam intervalos diferentes, são inversões um dos outros e participam da mesma classe de intervalo. Um intervalo de 4 semitons ascendente é uma terça maior, descendente é uma sexta menor. Neste sentido, podemos pensar, por exemplo, o ciclo de 8 semitons como um ciclo de terças maiores retrógrado, mas tocado ascendentemente.

Isso faz com que, em geral, os ciclos de 8, 9, 10 e 11 semitons possuam as mesmas qualidades que discutimos em relação aos ciclos de 4, 3, 2 e 1 semitons respectivamente. Para algumas aplicações, como a geração de padrões melódicos e escalas como as descritas por Slonimsky e outras estruturas sem repetição de oitava, pensá-los na versão original e não-oitavante faz mais sentido e gera um resultado diferente de identificá-lo com o ciclo oitavante; para outras aplicações, como progressões axiais, pensá-los como um ciclo oitavante retrógrado pode fazer mais sentido.

Em Thesaurus of scales and melodic patterns, Nicolas Slonimsky descreve uma série de escalas e padrões melódicos construídos principalmente sobre ciclos intervalares como os discutidos até aqui. As notas do ciclo – que Slonisky descreve como divisões de uma quantidade de oitavas – formam os tons principais, sobre os quais três operações podem ser realizadas:
“Escalas e padrões melódicos são formados pelo processo de Interpolação, Infrapolação e Ultrapolação. A palavra Interpolação é de uso comum; aqui, ela significa a inserção de uma ou várias notas entre os tons principais. Infrapolação e Ultrapolação são termos criados. Infrapolação indica a adição de uma nota abaixo de um tom principal; Ultrapolação refere-se à adição de uma nota acima do próximo tom principal. A Infrapolação e a Ultrapolação resultam em uma mudança de direção, com a linha melódica progredindo em ziguezagues. Infrapolação, Interpolação e Ultrapolação podem ser combinadas livremente, resultando em formas hifenizadas: Infra-Interpolação, Infra-Ultrapolação e Infra-Inter-Ultrapolação.” (Slonimsky, 1947, p. ii)
Algumas dessas operações resultam em escalas e estruturas que já discutimos – e.g.: por exemplo a interpolação de uma nota um tom acima de um ciclo de quatro semitons resulta na escala de tons inteiros (ciclo de dois semitons) e a interpolação de uma nota um semitom acima do ciclo de três semitons resulta na escala octatônica – enquanto outras resultam em ordenamentos específicos destas – e.g.: a interpolação de uma nota um tom acima de um tom principal e ultrapolação de uma nota uma terça maior acima do próximo resulta no terceiro modo de transposição limitada, como na imagem abaixo.



Por outro lado, quando realizamos operações semelhantes em ciclos não-oitavantes, geramos escalas e padrões melódicos não oitavantes. No exemplo abaixo, o uma inter-ultrapolação sobre c8 gera uma coleção com as mesmas classes de notas que o segundo modo de transposição limitada, distribuídos ao longo de duas oitavas.

No exemplo abaixo, interpolei quatro notas em um ciclo de 9 semitons para gerar uma escala sem repetição de oitava com características dóricas (terça menor, sexta maior).

No exemplo abaixo o ciclo de 4 semitons é interpolado no ciclo de 9 semitons:

Há incontáveis possibilidades: melodias, padrões melódicos, escalas sem repetição de oitava, combinações de transposições e etc. Elas terão que ficar para outros textos. No momento, gostaria de passar ao último conjunto de ciclos: os ciclos de quarta e quinta.
Os ciclos de Cinco e Sete semitons (Diatessarão e Diapente)
Os ciclos de quarta e quinta justas também são retrógrado um do outro, mas nenhum dos dois cabe em uma oitava e, na verdade, ocupam, respectivamente, cinco e sete oitavas até se completar. Assim como os ciclos de segunda menor e sétima maior, os ciclos de quarta e quinta justas resultam numa distribuição específica da escala cromática. Para comprimi-los a uma oitava é preciso pensá-los como uma combinação de quintas e quartas ascendentes e descendentes.


Como mencionei anteriormente, estes ciclos entretém relações com os ciclos de menor (por resultar no mesmo conteúdo de classes de notas: a escala cromática), o ciclo de segundas maiores (e sétimas menores, que resultam na escala de tons inteiros), o ciclo de terças menores e maiores. As escalas pentatônica e diatônica são versões truncadas dele (5 e 7 primeiros tons respectivamente). Mas é sua relação com o ciclo de segundas menores, através do ciclo de segundas maiores que me intriga e fornece algumas possibilidades de combinação.
Um ciclo de quintas justas ascendente começando em dó, como notamos anteriormente, pode ser descrito como dois ciclos de segundas maiores intercalados e distando uma quinta justa. O ciclo de um semitom possui uma qualidade semelhante: ele pode ser descrito como dois ciclos de dois semitons distando um semitom de distância. Deste modo, se começarmos um ciclo de semitom e um ciclo de quintas justas eles serão descritos por dois ciclos de dois semitons, com um dos ciclos uma quarta aumentada de distância. Na imagem abaixo, é fácil de observar que a voz central contém c2 começando em dó – este ciclo é compartilhado por ambas. A voz superior contém c2 começando em G e a inferior começando em C#. Quando organizamos os ciclos c2 de modo a formar c1 e c7 temos uma progressão que resulta em um uníssono e um trítono a cada dois graus.


O que me chama a atenção nisso é que podemos combinar uma progressão em c7 (ou c5) com uma progressão em c1 (ou c11, c1 descendente), para formar uma alternância entre duas estruturas. No exemplo abaixo (que Flô Menezes atribui, em A Apoteose de Schoenberg a Alban Berg), a voz inferior segue c5, enquanto as três vozes superiores (que formam um tricorde vienense, isso é, de baixo pra cima, uma quarta aumentada e uma quarta justa) seguem um c11, tocado como c1 descendente. O resultado é um dominante extendido alternando entre um acorde dominante com nona aumentada e um dominante com décima terceira até retornar ao ponto de partida.

A mesma lógica funcionaria para qualquer outra estrutura superior e o resultado é menos formulaico do que parece. Cabe ao leitor, testar outras possibilidades
Para concluir
O legal dos ciclos intervalares é como eles nos fazem pensar diferentemente sobre espaços de notas. Mesmo no sistema tonal, a diferença aparece no movimento dentro de um ciclo – em especial o ciclo de quintas, por onde deslocam-se, distanciam-se e aproximam-se as diferentes tonalidades. No caso de um pensamento musical pós-tonal, a noção de ciclo nos convida a reconceber a ideia de um espaço de notas a partir da multipolaridade, da simultaneidade de forças iguais e contrárias para além de um dodecafonismo estrito. É que, como disse, a simetria dos ciclos intervalares impede que, a priori, se possa definir um centro tonal e e uma hierarquia intervalar: é preciso encarar cada nota em estado puro.
Em textos posteriores, quero explorar alguns usos de ciclos intervalares: progressões axiais, sistemas multi-tônica, mais escalas não-octavantes e suas propriedades, padrões melódicos, escalas simétricas e modos de transposição limitada. Este texto já ficou longo demais com um simples sobrevôo e acredito que cada um destes tópicos rende mais um bocado de palavras.
Referencias
Kingstone, Alan James, and Barry Harris. The Barry Harris harmonic method for guitar. Jazzworkshop productions, 2006.
Messiaen, Olivier. The technique of my musical language [trad. John Satterfield].
Schillinger, Joseph. The Schillinger System of Musical Composition. New York: Da Capo Press, 1946.
Slonimsky, Nicolas. Thesaurus of Scales and Melodic Patterns. New York: Schirmer Books, 1947.
Straus, Joseph N. Introduction to post-tonal theory. WW Norton & Company, 2016.
Susanni, Paolo; Elliott Antokoletz. Music and twentieth-century tonality: Harmonic progression based on modality and the interval cycles. Routledge, 2012.
Yamaguchi, Masaya and David Demsey. John Coltrane Plays “Coltrane Changes”. Milwaukee: Hal Leonard, 2003.