Tag: Teoria pós-tonal

  • Que acorde é esse?

    Já te aconteceu de estar divagando em um instrumento ou em um DAW, encontrar um acorde diferente ou pouco usual e se perguntar: que diabo é isso? Como eu descrevo, dou nome, comunico ou anoto isso? De onde isso vêm? Que outros acordes soam parecidos? 

    A maior parte dos acordes que encontramos no dia-a-dia são truncamentos de alguma escala do sistema diatônico ordenada em terças – o que gera uma grande variedade de acordes facilmente nomeáveis: as tríades maiores, menores, aumentadas, diminutas e suspensas; com as sétimas maiores, menores e diminutas; com as extensões de nona, décima primeira e décima terceira e as eventuais alterações de quaisquer dos seus componentes. Mas não é esse tipo de acorde que me interessa neste texto – exceto como caso particular de um enquadramento maior. As tríades (maiores, menores, aumentadas, diminutas e suspensas) são somente 5 casos entre 19 possíveis estruturas de 3 classes de nota. Todos os acordes completos da escala diatônica (com tônica, terça, quinta, sétima, nona, décima primeira e décima terceira), são somente rotações de um caso entre 66 estruturas de 7 classes de nota. 

    Uma parte considerável das estruturas de sete notas pode ser descrita como uma alteração da escala diatônica, resultando em nomes bizarros como, por exemplo: Cmaj7b5(b9,11,#13). Mas nomeá-las deste modo ainda é assumir que estas estruturas seriam construídas primariamente como sobreposição de terças. Como descrever, usando essa lógica, uma estrutura composta por C, C# e D? Quem sabe: C#maj7(b9) com terça e quinta omitidas? Ou então C(b9,9) com terça e quinta omitidas? Ou Dmaj7(#6) com terça e quinta omitidas? Todos jeitos desconfortavelmente complicados de nomear uma estrutura que, descrita, ocupa menos espaço e que é construída por uma lógica diversa da sobreposição de terças que fundamenta a linguagem tonal.

    É pra isso que servem outras tipologias de simultaneidades – e de estruturas musicais em geral. Neste texto quero explorar algumas formas de gerar, dar nome e entender as estruturas de classes de nota fora da lógica tonal de tríades, tétrades, extensões e alterações.

    Neste texto, quero apresentar métodos que tornam mais simples e intuitivo entender essas estruturas, ajudando a expandir sua abordagem musical. Não pretendo, entretanto, que ele dê conta de todas as formas de nomear todas as estruturas de classes de notas, mas que introduza algumas ideias: a tipologia de acordes a partir da sua produção, como descrita por Vincent Persichetti e Stefan Kotska; a tipologia da teoria de conjuntos descrita por Howard Hanson e Allen Forte, mas mais pedagogicamente explicada por Joseph Straus e Miguel Roig-Francolí; e, por fim, um esquema de cifragem baseado em algumas interpretações dos conjuntos da teoria pós-tonal com um viés mais tonal – ou pelo menos diatônico na sua descrição – descrita por Júlio Herrlein.

    Além disso, ainda que estas tipologias possam descrever e analisar acordes de qualquer tamanho – e, na prática, em qualquer sistema de notas – vou me limitar nas ilustrações às estruturas de três e quatro notas (com algumas exceções) dentro do sistema temperado de doze tons. Assim, espero evitar escrever um texto exaustivamente longo, mas, quem sabe, abrir as portas para uma exploração mais detalhada.

    De qualquer modo, espero que este texto sirva para lhe dar informações para analisar suas próprias ideias ou para encontrar novas estruturas de classes de notas. Convido o leitor a tomar seu tempo explorando os tricordes e ideias apresentadas, testando compor e improvisar com elas. 

    Para facilitar essa experimentação, este post vêm com dois materiais complementares: um dicionário de formas-acorde para violão/guitarra contendo as três rotações de cada um dos 19 tricordes da escala cromática em posição aberta e fechada em diferentes cordas; e, para quem prefere um DAW a um violão, um midi pack contendo todas as transposições dos 19 tricordes, nas três rotações, em posição fechada e aberta.

    Uma introdução sobre notação com inteiros

    Antes de começar a discutir as tipologias propriamente ditas, preciso introduzir uma forma de descrever o conteúdo das estruturas de classes de notas: a notação com inteiros. Ainda que esta notação possa ser incômoda no começo, ela tem algumas vantagens: 1) abandonar o viés diatônico da notação com letras (C, D, E, F…); evitar os problemas de nomenclatura que surgem da enarmonia (G# = Ab; E# = F e etc); e gerar uma notação mais limpa e mais fácil de entender (descrever o conteúdo de Caug como 048 em vez de C E G#). Nos exemplos notados, utilizarei o pentagrama tradicional, mas para a escrita e análise, a notação com inteiros gera um texto muito mais agradável e uma lógica mais simples.

    A notação com inteiro nada mais é do que substituir as letras (C, C#, D…) ou o solfejo (Dó, Dó sustenido, Ré…) por números inteiros (0, 1, 2…), identificando 0 com C. Geralmente A# (ou Bb) e B, que seriam 11 e 12, podem ser substituídos por uma letra, A e B ou T e E para manter todas as notas com um dígito. Rapidamente, a gente se acostuma a pensar as classes de nota com inteiros, mas vou deixar abaixo uma tabela de referência para facilitar a leitura.

    0C
    1Dó sustenido, Ré bemolC#, Db
    2D
    3Ré sustenido, Mi bemolD#, Eb
    4MiE
    5F
    6Fá sustenido, Sol bemolF#, Gb
    7SolG
    8Sol sustenido, Lá bemolG#, Ab
    9A
    A (10)Lá sustenido, Si bemolA#, Bb
    B (11)SiB

    Usando notação de inteiros, também podemos nos livrar de outra forma de notação infestada de diatonismo: a nomenclatura de intervalos baseada na escala diatônica (segundas, terças, quartas, etc…). Na notação com inteiros, descrevemos os intervalos também como números, que descrevem a quantidade de semitons no intervalo. O intervalo entre 0 (C) e 4 (E), por exemplo, é 4 (4-0=0) assim como o intervalo entre 3 (Eb) e 7 (G) é (7-3=4). Para evitar confusão adicionamos “i” ao número para caracterizá-lo como um intervalo, então o intervalo entre 3 e 7 é i4.

    Geralmente nos referimos ao intervalo pela menor distância possível entre as duas classes de nota, por exemplo, entre 0 (C) e 7 (G) temos um intervalo de uma quinta justa (7 semitons) ou de uma quarta justa (5 semitons) e nos referimos ao intervalo como ic5 (classe intervalar 5, que contém dois intervalos: 5 e 7 semitons). A fórmula para isso pode parecer complexa, mas pode ser simplificada: mínimo (x-y módulo(12) ou y-x módulo(12)). Ou seja o menor valor possível da diferença entre as classes de nota, módulo 12. Um jeito simples é encontrar o intervalo positivo entre as notas, no nosso caso 7-0=7 e subtraí-lo de 12 (12-7=5). Como 5 é menor que 7, a classe intervalar é ci5.

    Outro jeito simples é imaginar e um relógio como na imagem abaixo e buscar o caminho mais curto entre as duas classes de nota. Em sentido horário, de 0 a 7 são 7 semitons (ou horas…) de 7 a 0 são 5 semitons, então a classe de intervalo é ci5.

    Acredito que rapidamente é possível se acostumar com essa notação também, mas deixarei abaixo uma tabela para consulta e para facilitar a explicação.

    SemitonsIntervaloClasse IntervalarNome diatônico
    1i1ci1Segunda menor
    2i2ci2Segunda maior
    3i3ci3Terça menor
    4i4ci4Terça maior
    5i5ci5Quarta justa
    6i6ci6Quarta aumentada/Quinta diminuta
    7i7ci5Quinta justa
    8i8ci4Sexta menor
    9i9ci3Sexta maior
    10i10ci2Sétima menor
    11i11ci1Sétima maior

    Resumi bastante e deixei de lado noções importantes para a teoria pós-tonal, mas isso será o suficiente para a nossa discussão. Caso você queira saber mais sobre notação com inteiros, o primeiro capítulo de Introdução à teoria pós-tonal de Joseph N. Straus é bastante detalhado e muito mais completo do que este texto.

    Geração de acordes por intervalos

    Tanto Vincent Persichetti (em Twentieth Century Harmony: Creative Aspects and Practice) e Stefan Kotska (em Materials and Techniques of 20th Century Music) organizam sua descrição dos acordes a partir de um processo de construção baseado nos intervalos genéricos da escala diatônica: segundas, terças e quartas (sendo que quintas, sextas e sétimas são inversões delas – ou, nos nossos termos, são da mesma classe intervalar). A ideia é gerar acordes a partir da repetição iterativa de um tipo de intervalo genérico a partir de uma tônica. Por exemplo:

    1. O acorde de dó maior (047) é construído partindo de dó (0) e adicionando terças, uma maior (ci4) e uma menor (ci3).
    2. O acorde Csus (057) é uma inversão (reordenação) de um acorde construído por quartas justas, partindo de 7: 705.
    3. A forma usual de tocar um acorde dominante com nona no violão (024A) – ou seja, com a quinta omitida – é uma inversão de um acorde construído por segundas maiores partindo de Bb: A024.

    Por intervalo genérico diatônico quero dizer as segundas (menor [ci1] e maior [ci2]), terças (menores [ci3] e maiores [ci4]) e quartas (justas [ci5] e aumentadas [ci6]) possíveis dentro da escala diatônica. A linguagem pode soar diatônica demais para um contexto pós-tonal, mas vejo duas vantagens em pensar assim: em primeiro lugar, conecta uma linguagem pós-tonal com a linguagem já bem estabelecida dos intervalos diatônicos; em segundo lugar, permite que cada categoria de acorde seja produzida por um intervalo genérico que possui duas formas, evitando que os acordes virem simplesmente ciclos intervalares, como os que discuti em outro texto. Essa lógica permite explorar tanto acordes familiares – como tríades e tétrades – como estruturações mais exóticas. 

    Há ainda categorias de simultaneidades que não são produzidas pela repetição de um intervalo genérico: acordes mistos, policordes e acordes espelhados. Acordes mistos, como 014, são produzidos por intervalos genéricos diferentes (segunda e terça neste caso, ci1 e ci3). Policordes são criados pela combinação de duas outras simultaneidades, geralmente tríades. Acordes espelhados são uma categoria especial de policorde, gerada pela combinação de duas estruturas simétricas em relação a um eixo de simetria. 

    Nos próximos parágrafos, vou descrever os acordes gerados por este processo – vários, certamente, familiares ao leitor – a começar pelos acordes baseados em terças. Ainda que, pra fim de exercício, seja interessante praticar compor ou tocar com utilizando um único tipo de acordes por vez, é importante dizer que isso não é uma regra para uma composição real. Como diz David Cope: 

    A música baseada em intervalos diferentes de terças não precisa evitar a harmonia tercial (acordes construídos em terças), mas pode, em vez disso, ampliar as convenções triádicas de harmonia e melodia. […] A maioria das obras bem-sucedidas não consiste inteiramente de um único intervalo. […] Intervalos centrais devem predominar, mas sem desequilibrar os demais intervalos. (COPE,, p.47)

    Terciais

    Ainda que os acordes baseados em terças não se encaixem no nosso problema – i.e. da nomeação de estruturas de classes de notas fora da tradição tonal – eles são um bom ponto de partida. Isso porque eles são, em primeiro lugar, pela sua familiaridade, uma boa ilustração do processo e da linguagem que utilizaremos. Em segundo lugar, eles são também materiais usados na música pós-tonal, ainda que de formas diferentes daquelas da prática comum. Como diz Kotska:

    Grande parte da música do século XX também é essencialmente terciária [construída sobre terças], mas, além disso, há uma quantidade significativa de música que utiliza acordes construídos a partir de 2as, de 4as e de combinações de vários intervalos. (2018)

    Os acordes terciais são aqueles construídos pela repetição sucessiva de terças (ci3 e ci4) a partir de uma nota inicial e podem ter qualquer tamanho de três a doze notas. Por conveniência, vou priorizar, como disse anteriormente, os conjuntos de três notas – que chamarei de tricordes – com um pouquinho sobre acordes de 4, 7 e 12 notas – respectivamente, tetracordes heptacordes e dodecacordes. 

    Há quatro estruturas geradas pela sobreposição de terças, idênticas às tríades tradicionais: os acordes diminutos, menores, maiores e aumentados. O tricorde diminuto (036) é gerado pela sobreposição de ci3. O tricorde menor (037) é gerado por ci3 e ci4 e o tricorde maior (047) é gerado por ci4 e ci3. O acorde aumentado (048) é gerado pela sobreposição de ci4. Observe que os tricordes maiores e menores possuem a mesma estrutura intervalar (ci3 e ci4), mas invertida. Isso é, o tricorde menor (037) pode ser pensado como ci3 e ci4 ascendendo a partir de uma nota dada enquanto o tricorde maior (047) pode ser pensado como ci3 e ci4 ascendendo a partir de uma nota dada. Os tricordes diminuto (036) e aumentado (048) não são inversíveis, pois possuem a mesma estrutura “subindo” ou “descendo” – são, em outas palavras, simétricos.

    É evidentemente possível continuar adicionando terças a esses acordes – que resultariam, geralmente, em tetracordes de sétima. Aos tricordes menores e maiores, é possível adicionar tanto uma terça menor, quanto maior, resultando em um tetracorde, respectivamente, de sétima menor (A) ou maior (B). Ao tricorde diminuto, também é possível adicionar uma terça menor ou maior, resultando respectivamente em uma tétrade de sétima diminuta (0369) ou menor com quinta diminuta (036A). Ao tricorde aumentado, só é possível adicionar uma ic3, resultando em CaugMaj7 (048B), pois ic4 resultaria fecharia o ciclo intervalar (0480…).

    A escala diatônica pode ser pensada como um heptacordes formado por uma sucessão de terças – e as descrições de acordescalas geralmente são interpretações terciais do conjunto diatônico: 037A258 seria o eólio (sexto modo da escala maior) organizado em terças: ci3, ci4, ci3, ci4, ci3, ci3. Uma ideia interessante é combinar transposições dos três tricordes terciais para formar a escala cromática: C (047) Ebm (36A) G#dim (8B2) e Aaug (915).

    Escala diatônica em terças e escala cromática construída como quatro tricordes em terças.

    É possível também gerar a escala cromática pela combinação de quatro transposições de um mesmo tipo de tricorde tercial. John O’Gallagher, em Twelve-Tone Improvisation (A Method for Using Tone Rows in Jazz), descreveu detalhadamente todas as combinações de um tricordes (exceto 036) para formar séries dodecafônicas (que resultam em uma escala cromática) e não repetirei as resultantes dele aqui. Também é possível continuar adicionando terças até atingir toda a escala cromática. Bruce Arnold, em My Music: Explorations in the Application of 12 Tone Techniques to Jazz Composition and Improvisation, descreve um dodecacorde que ele chama acorde de 23ª gerado pela repetição de terças.

    Acorde de 23ª tocado escalarmente em terças e como simultaneidade.

    Os acordes baseados em terças, como disse, podem ser usados para fazer música pós-tonal – e foram usados por Berg, Messiaen, Stravinsky, etc etc etc… – mas, como disse anteriormente, são acordes mais familiares. Quando passamos aos acordes baseados em segundas e em quartas, começamos a explorar sonoridades mais distantes da prática comum, ainda que, à excessão de 012, todos os tricordes secundais e quartais podem ser encontrados dentro da escala diatônica e usados como estruturas superiores em acordes tonais.

    Secundais

    Os acordes secundais são bastante versáteis em sua sonoridade, ainda que difíceis de conduzir parcimoniosamente, pela sua estrutura de classes de nota condensada: eles podem soar abrasivos e dissonantes – quase como um erro – podem soar abertos e etéreos, quando em posição aberta, e podem soar meio ocos e distantes quando organizados em sétimas. A versão mais comum dos acordes secundais são os clusters, que são formados ao tocar várias notas adjacentes, por exemplo, percutindo as teclas do piano com a mão espalmada ou com o antebraço e tocando todas as notas na região coberta por estas partes do corpo – algo que, creio, a maior parte das pessoas que interagiu com o piano já fez ao menos uma vez por diversão. Tides of Manaunaun, de Henry Cowell, utiliza esta técnica com um efeito impressionante.

    The Tides of Manaunaun, de Henry Cowell

    Há quatro estruturas geradas pela sobreposição de segundas. A sobreposição de duas segundas menores (ci1) gera o tricorde cromático (012). A sobreposição de duas segundas maiores (ci2) gera o tricorde de tons inteiros (024). Tanto 012 quanto 024 são simétricos e, portanto, não inversíveis. Há duas estruturas geradas pela sobreposição de ci1 e ci2: o tricorde 013 (ci1 + ci2) e o tricorde 023 (ci2 + ci1) que são inversão um do outro.

    Qualquer tricorde pode ser rotacionado, para que qualquer de suas classes de nota fiquem no baixo. Chamo de rotação, neste texto, o que na harmonia tonal, se chama de inversão, isso é: uma estrutura que contém as mesma classes de notas mas ordenadas diferentemente na realização. Abaixo, as três rotações de 024 são apresentadas em acorde e em seguida arpejadas.

    As três rotações de 024 tocadas como simultaneidade e arpejadas.

    Os tricordes, também podem ser tocados em posição aberta, isto é, ordenados de um modo que entre a nota mais aguda e a mais grave haja mais de uma oitava. Geralmente isso é feito, num conjunto de três notas, transpondo a intermediária em uma rotação uma oitava acima. Observe que, no caso dos acordes de segunda, a posição aberta da terceira rotação gera um acorde construído em sétimas. 

    As posições abertas, em especial da primeira e da segunda rotação, geram sonoridades bem mais amenas do que as posições fechadas tricordes acordes secundais. De fato, podemos adicionar mais uma nota um semitom acima ou abaixo do tricorde 024 (5 ou B), obtemos voicings tradicionais de violão para, respectivamente, Dm7(9) e Cmaj7(9). Se adicionarmos uma nota um tom acima ou abaixo, podemos obter voicings tradicionais para C7(9) e D7(9).

    Acordes de nona sem quinta tocados em voicing usual e como tetracordes secundais.

    Neste ordenamento, entretanto, os tetracordes começam a perder um pouco da sonoridade secundal, em função das terças e quintas que compõe a estrutura concreta deles. Do mesmo modo, um tetracorde maior com sétima maior (047B) começa a perder a sonoridade tercial se ordenarmos ele como uma sucessão de quintas e segundas (4B07).

    Cmaj7 ordenado em terças e ordenado em quintas e segundas, como Cmaj7/E.

    Tanto o tricorde cromático (012) quanto o tricorde de tons inteiros (024) podem ser combinados com transposições suas para formar a escala cromática sem repetir nenhuma nota. 

    Os tricordes 013 e 023 não conseguem sozinhos gerar a mesma estrutura, mas combinando duas transposições de cada, é possível fazê-lo.

    Ainda é possível combinar uma transposição de cada tipo de tricorde secundal (012, 013, 023 e 024) para gerar a escala cromática.

    Por fim, acordes terciais de seis e sete notas podem ser reordenados como acordes secundárias. No exemplo abaixo, um cluster de sete notas é formado como reordenação de C7(9,11,13) e um cluster de seis notas é formado como reordenamento de Cmaj7(9,#11)

    Quartais

    Os acordes quartais são ambíguos, melhores de conduzir, mas ainda assim costumam ser usados paralelamente. Pra mim, eles tem uma sonoridade plástica, vagamente modernista e estática, mesmo quando contém um trítono. Tanto Persichetti quanto Schoenberg, apontam que os acordes quartais surgem como decorações de acordes triádicos. A versão mais comum são os acordes suspensos, regularmente usados na música popular diatônica, às vezes chamados Csus, Csus4 ou, em outra inversão Csus2. Outra versão comum, ainda que ordenada com uma terça maior entre as duas vozes superiores, é o acorde “So What”. Alberto Ginastera organiza sua sonata para violão majoritariamente em volta de um acorde quartal formado pelas cordas soltas do violão – que também contém uma terça maior, mas é principalmente quartal. Tanto o acorde So What, quanto as cordas soltas do violão podem ser pensados também como um ordenamento da escala pentatônica.

    Miles Davis – So What (Official Audio)

    Alberto Ginastera – Sonata for guitar, Op. 47 (Score video)

    Há três tricordes gerados pela sobreposição de quartas (ci5 e ci6). A sobreposição de duas quartas justas (ci5) gera 05A, que pode ser reordenado como os acordes suspensos Bbsus2 (A05) e Fsus4 (5A0). As duas sobreposições de uma quarta justa (ci5) com uma quarta aumentada (ci6) geram: 05B (ci5 + ci6) e 06B (ci6+ci5) – as duas inversões do tricorde vienense. Não é possível gerar um tricorde por sobreposição de quartas aumentadas (ci6), porque isso geraria simplesmente um ciclo de seis semitons contendo duas notas (0 6 0…).

    Assim como os outros tricordes, eles podem ser tocados em três rotações, em posição aberta ou fechada. No caso do tricorde de quartas justas, a primeira rotação é o tricorde quartal “puro”, a segunda é o tricorde sus4 e a terceira é o tricorde sus2. A terceira posição da rotação aberta forma um acorde quintal – quintas justas (ci7), no caso 057 (ordenado como 507), ou diminutas (ci6) e justas (ci7) no caso de 05B (ordenado como B50) e 06B (ordenado como B60). As demais rotações dos tricordes quartais abertos geram acordes que misturam quintas e sétimas.

    Rotações dos 3 tricordes quartais em posição fechada.
    Rotações dos 3 tricordes quartais em posição aberta.

    O tricorde 05A pode ser combinado com suas transposições sobre um ciclo de três semitons para formar a escala cromática. Também é possível continuar sobrepondo quartas até formar o ciclo de quartas completo. Os tricordes vienenses só conseguem formar a escala cromática sem repetições se intercalarmos as suas inversões.

    É possível gerar um dodecacorde sobrepondo quartas justas até completar a escala cromática, sem repetir nenhuma nota. Também é possível gerar um dodecacorde partindo de uma nota e intercalando uma quarta aumentada (ci6) e uma quarta justa (ci5) até completar a escala cromática. Não é possível completar a escala cromática se começarmos com uma quarta justa.

    Dodecacorde construído sobre ci5 e dodecacorde construído sobre ci6 e ci5 alternados.

    É possível construir tricordes quartais sobre todos os graus da escala diatônica. No modo maior, os graus II, III, V, VI e VII são geram transposições do tricorde 05A. O grau I gera o tricorde 05B e o grau IV gera o tricorde 06B transposto i5 ascendente. 

    Por fim, todos os acordes completos da coleção diatônica podem ser construídos como heptacordes quartais. Começando em B é possível construir toda a escala diatônica com quartas justas. Em todos os graus, há uma quarta aumentada dentro do heptacorde. No exemplo abaixo, começando em 0, há uma quarta aumentada entre 5 (F) e 11 (B).

    Escala diatônica natural em quartas justas. Escala maior natural em quartas justas e aumentada.

    Acordes Mistos

    Eu havia mencionado que há 19 tricordes no sistema de doze notas. Até o momento, geramos 11 e já esgotamos os intervalos genéricos para construir tricordes por sobreposição deles. A última categoria de tricordes que discutiremos são aqueles gerados por intervalos mistos. Em certo sentido, 6 dos 11 tricordes que discutimos até agora são mistos: são gerados por classes intervalares diferentes, mesmo que agrupemos elas em intervalos genéricos idênticos. Se considerarmos a classe de intervalo, somente 012, 024, 036, 048 e 05A são tricordes gerados pela sobreposição de um intervalo; enquanto 013, 023, 037, 047, 05B e 06B são gerados por duas classes de intervalo. A diferença deles para os tricordes que vamos chamar de tricordes mistos neste texto é que não podemos usar tão facilmente a linguagem diatônica dos intervalos genéricos para descrevê-los do mesmo modo que as tríades. Para fins didáticos, vou adaptar a classificação das famílias de tricordes de Dariusz Terefenko e dividir os tricordes mistos em tricordes de semitom, de tons inteiros e pentatônicos.

    Tricordes de Semitom

    Os tricordes de semitom são aqueles gerados pela combinação de ci1 e outro intervalo (ci3 ou ci4). Tecnicamente poderíamos construir 05B e 06B como tricordes de semitom combinando ci1 e ci5 – gerando respectivamente B05 e 6B0 – ou combinando ci1 e ci6 – gerando B06 e 5B0, que são os mesmos acordes rotacionados. Entretanto já os geramos como sobreposição de quartas genéricas (ci5 e ci6) e as de semitom são simplesmente rotações delas.

    Há quatro tricordes de semitom: 014 e 034 (gerados duas combinações de ci1 e ci3) e 015 e 045 (gerados pelas duas combinações de ci1 e ci4). Em posição fechada, na primeira rotação, esses acorde tem um som bastante abrasivo, em função da segunda menor gerada entre as vozes. Entretanto, se rotacionarmos eles, ou tocarmos em posição aberta, eles soam mais consoantes e, em alguns casos, podem soar como shell voicings de tétrades ou como acordes com nona com notas omitidas.

    Tricordes de semitom tocados nas três rotações em posição fechada.
    Tricordes de semitom tocados nas três rotações em posição aberta.

    É possível combinar os tricordes de semitom com suas transposições para gerar uma escala cromática. No caso de 014, combinado com 034, há, pelo menos, duas opções:

    Duas combinações de transposições de 014 e 034 formando uma escala cromática.

    Também é possível continuar sobrepondo, alternadamente, c1 e c3, o que resulta em um hexacorde contendo todas as notas da escala hexatônica aumentada. Esta escala – e este processo em geral – é interessante, pois contém diversas instâncias dos tricordes 014 e 034, do mesmo modo que a escala diatônica contém 037 e 047, por exemplo.

    Este procedimento escalar não funciona com 015, que acaba gerando um icositetracorde ou uma escala de 24 notas sem repetição de oitava. Entretanto também é possível criar uma escala cromática combinando diferentes transposições de 015 e 045, como no exemplo abaixo.

    Tricordes de tons inteiros

    Os acordes de tons inteiros são subconjuntos da escala de tons inteiros e podem ser gerados pelas combinações de ci2 e ci4 (mas também poderiam ser gerados por quaisquer pares de intervalos da escala de tons inteiros). Tecnicamente 024 e 048 são tricordes de tons inteiros, mas não são acordes mistos e já geramos eles como sobreposições de segundas e terças respectivamente.

    Há dois tipos de acordes de tons inteiros: 026 e sua inversão 046. Apesar do trítono, estes acordes soam bastante suaves.

    Novamente, eles podem ser tocados em três rotações e em posições abertas, que tendem a soar mais brandas.

    É possível continuar adicionando ci2 e ci4 intercaladamente para produzir duas pequenas escalas ou tetracordes que são idênticos ao tetracorde de sétima dominante com quinta diminuta e, juntos, formam a escala de tons inteiros.

    As transposições de 026 e 046 podem ser combinadas para gerar uma escala cromática.


    Pentatônicos

    Os tricordes pentatônicos são subconjuntos da escala pentatônica e são gerados pela combinação dos dois intervalos de graus conjuntos da escala cromática: ci2 e ci3.

    Intercalando ci2 e ci3 é possível produzir um icositetracorde ou uma escala de 24 notas sem repetição de oitava que contém diversas instâncias internas da escala pentatônica e da escala diatônica.

    Assim como os outros tricordes – à exceção de 036 – é possível gerar uma escala cromática combinando transposições de 025 e 035.

    Com isso, encerramos nossa discussão sobre a produção de todos os conjuntos de três classes de notas possíveis no sistema de doze sons. Evidentemente é possível gerar acordes ainda maiores e há mais dezenas de acordes de quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez e onze notas que poderiam ser discutidos, mas isso seria exaustivo e de pouca utilidade neste contexto. Cabe ao leitor explorar outras possibilidades e usos destas estruturas. Uma sugestão é construir acordes combinando dois tricordes sem notas em comum para gerar policordes de seis notas – que espero descrever e catalogar, junto com uma discussão sobre compressão modal genérica em um texto futuro.

    Teoria de Conjuntos

    Agora que temos todos conjuntos de três notas, é hora de introduzir a teoria de conjuntos e, com ela, algumas formas de nomear cada um deles e suas relações. Dito de outro modo: agora é hora de começar a dar nomes específicos a cada um dos bois.

    Até agora, descrevi as estruturas que estamos discutindo de maneira ambígua: como acordes, estruturas de classes de notas, conjuntos, etc. Nesta seção vou me referir a elas como conjuntos de classes de notas, definidos como uma coleção não ordenada de classes de notas. Ou, como diz Straus: “motive from which many of the identifying characteristics—register, rhythm, order—have been boiled away.” (XXXX, p. 43). Dizemos que são uma coleção não ordenada, porque a ordem que atribuímos a ela para descrição e análise é indiferente em relação à música que estamos analisando ou compondo. O conjunto 047, por exemplo, pode aparecer como um acorde de dó maior em qualquer rotação – C, C/E, C/G – com notas duplicadas, arpejado ou tocado simultaneamente, em qualquer registro ou ritmo. Interessa-nos somente o conteúdo de classe de notas: 047. 

    Forma normal

    Geralmente, notamos os conjuntos em sua “forma normal” que é a forma mais compacta de apresentá-lo. Por “compacta” quero dizer: a forma, sem notas repetidas, e ordenada para obter o menor intervalo entre a primeira e a última nota, depois entre a primeira e a penúltima e assim sucessivamente. Neste caso o intervalo é sempre calculado ascendentemente, como se estivesse subindo uma escala ou, pensando novamente no relógio, em sentido horário. Considere os três ordenamento seguintes: 25A, A25 e 5A2. O primeiro (25A) possui um intervalo de 8 semitons entre a primeira e a última; o segundo (A25) possui um intervalo de 7 semitons; o terceiro (5A2), de 9 semitons. Logo a forma normal deste conjunto é A25.

    Transposição

    O conjunto A25 possui as mesmas classes de notas do acorde de Bb maior e o conjunto 047 possui as mesmas classes de notas de C maior. Não é coincidência ambos serem acordes maiores: eles possuem a mesma estrutura intervalar – isso é: uma terça maior (ci4) seguida de uma terça menor (ci3). Esses conjuntos são relacionados por transposição: A25 é 047 transposto 10 semitons acima ou dois abaixo:

    0 + 10 = 10 (A)
    4 + 10 = 14 -> 14 mod 12 = 2
    7 + 10 = 17 -> 17 mod 12 = 5

    Observe que, quando o número ultrapassa 11, precisamos reduzi-lo ao nosso espaço de notas, que vai de 0 a 11, realizando a operação de módulo 12. Outra opção, mais simples, é caso a transposição superar 11, utilizar o outro intervalo da classe de notas e subtraí-lo da nota original:

    0 + 10 = 10 (A)
    4 – 2 = 2
    7 – 2 = 5

    Todos os conjuntos relacionados por transposição pertencem a mesma família de conjuntos e geralmente nos referimos a eles pela versão mais compacta começando em 0. No caso dos conjuntos que estamos discutindo, todas as transposições do acorde maior, essa versão seria 047.

    Inversão

    Ao longo do texto, me referi a uma outra relação de parentesco entre os conjuntos: a inversão. Inversão aqui refere-se a inversão da estrutura intervalar do conjunto, de modo que inverter 047 (ci4 e ci3 ascendentes) vira 085 (ci4 e ci3 descendentes)

    0 – 4 = -4 ou 0 + 8 = 8
    8 – 3 = 5

    Já que -4 excede nosso espaço de notas, invertemos o sinal e trocamos para o outro intervalo de classe de notas: +8. A forma normal de 085 é 580 e ambos contém as mesmas notas de um acorde de Fá menor. Entre todas as transposições de 580, 037 é a forma mais compacta começando em 0 e esta seria a forma padrão deste conjunto. 

    Forma prima

    Como possuem a mesma estrutura intervalar, 047 e 037 pertencem a mesma família de conjuntos, mas é preciso decidir a forma padrão da família inteira: a forma prima. Para gerar a forma prima, buscamos a versão mais compacta de todas as transposições das duas inversões da estrutura intervalar, que, no caso dos conjuntos que estamos discutindo, é 037. Agora temos uma forma padrão para todas as tríades maiores e menores e uma relação entre elas e podemos dar só um nome a elas e referir-nos a todas as instâncias da família em relação a este nome. A este tipo de família chamamos Classe de Conjuntos. Na teoria pós-tonal, por razões que explicarei em breve, este nome é 3-11. O acorde de Sol maior (7B2), por exemplo, pode ser descrito como 3-11 I7, ou seja: 3-11 em sua forma invertida 047 (não prima), 047, e transposta 7 semitons ascendentemente.

    Nomenclatura

    Todos os conjuntos de classes de notas podem receber um nome semelhante e participam de uma classe de conjunto. Este nome tem duas partes: cardinalidade e ordinalidade. A cardinalidade é um número que indica o número de classes de notas contidos no conjunto (3 no nosso caso). Um conjunto com sete classes de notas diferentes começaria com 7. A segunda parte do nome diz respeito à posição do conjunto dentro de uma lista de todos os conjuntos da mesma cardinalidade. A ordem dos conjuntos nesta lista é determinada de uma maneira semelhante à determinação das formas normais e primas: os conjuntos mais compactos vêm primeiro. 

    Saber construir a lista – exceto na tentativa de recriá-la em um mundo pós-apocalíptico – é irrelevante e ela pode ser encontrada em vários lugares online e em livros. A wikipédia tem uma lista completa que ainda conecta os conjuntos com acordes e escalas com nomes mais tradicionais. Na lista da wikipédia, entretanto, há uma diferença na notação: os conjuntos aparecem seguidos de A e B quando possuem inversão, sendo A a prima e B a inversa.

    Há outras informações importantes na lista da wikipédia, como os complementos cromáticos de cada classe de conjunto – que são o resultado de subtrair o conjunto da escala cromática e recebem a mesma ordenação; o vetor classe intervalar – que é uma descrição do conteúdo intervalar do conjunto; e as relações Z – que são relações entre dois conjuntos da mesma cardinalidade que possuem estruturas intervalares diferentes mas o mesmo conteúdo intervalar. Não vou me aprofundar em nenhum desses tópicos, mas se houver interesse, escrevo algo sobre posteriormente. (As relações Z são particularmente interessantes e o uso dos conjuntos 4-Z15 e 4-Z29 pelo Elliot Carter são um exemplo que vale ser debatido).

    Os tricordes como conjuntos de classe

    Agora que temos uma nomenclatura para todos os conjuntos, podemos retomar nossos tricordes e redescrevê-los a partir da teoria de conjuntos.

    Os acordes que geramos pela sobreposição de terças já estão em sua forma normal: 036 é a forma prima de 3-10 e 048 é a forma prima de 3-12. O par 037 e 047 são ambos parte da classe 3-11, sendo que a forma prima é 037.

    (036) 3-10
    (037) 3-11
    (047) 3-11 I
    (048) 3-12

    Os acordes gerados por segundas também estão em sua forma normal: 012 é a forma prima de 3-1 e 024 é a forma prima de 3-6. O par 013 e 023 são respectivamente a forma prima e invertida de 3-2.

    (012) 3-1
    (013) 3-2
    (023) 3-2 I
    (024) 3-6

    Os acordes gerados por quarta não estão em sua forma prima. O tricorde quartal (05A) é uma transposição de 3-9 que tem como forma prima 027. A forma prima de 05B é 016 e a forma prima de 06B é 056, sendo que a primeira é a forma prima da classe de conjunto: 3-5.

    (016) 3-6
    (056) 3-6 I
    (027) 3-9

    Os acordes mistos já estão em sua forma normal.

    (014) 3-3
    (034) 3-3 I
    (015) 3-4
    (045) 3-4 I
    (026) 3-8
    (046) 3-8 I
    (025) 3-7
    (035) 3-7 I

    Essa linguagem é útil para descrever e analisar música pós-tonal, tanto no aspecto melódico como harmônico – essa música não é feita de puro caos, mas de estruturas com propriedades específicas, motivos mais ou menos abstratos que informam a linguagem – os materiais e as operações que se executam sobre eles. Ela também pode ser útil para compor: escolha uma ou duas classes de notas e tente escrever algo: uma sequência, uma melodia. Tente aninhar ou encaixar uma na outra.

    Outra utilidade interessante da teoria de conjuntos é criar uma forma de descrever a distância entre dois conjuntos quaisquer. No caso dos tricordes, esse incrivel diagrama de Miles Okazaki (em Fundamentals of Guitar) mostra os conjuntos em forma normal separados por semitom. Os conjuntos não inversíveis estão no meio do eixo vertical e as formas prima e invertida de cada classe estão espelhadas (observe 016 na extrema esquerda e 056 na extrema direita). Os conjuntos ligados por uma linha tracejada diferem somente um semitom um do outro. 

    A distância entre dois conjuntos específicos pode ser medida pela distância a ser percorrida entre os conjuntos no gráfico mais a transposição necessária. Nesta versão mais abstrata de Joseph Straus, as classes de conjunto em forma prima estão ligadas do mesmo modo.

    Ainda que esta linguagem seja útil, creio que, para a música popular é preciso uma linguagem mais específica e mais conectada à tradição. Penso especificamente em uma forma de cifragem. Quem, afinal, colocaria “3-8 T0 5-Z12 I8 4-25 T5” em cima de uma letra e esperaria lembrar rapidamente o que isso quer dizer. É o que nos leva, finalmente, à última seção – e ao objetivo – deste texto.

    Cifragem

    Ok. Você achou explorou seu instrumento ou num DAW, você achou uma sonoridade peculiar, você se dispôs a ler até aqui, entendeu a construção dessa sonoridade, a classe de conjunto, o vetor classe intervalar, o espaço tonal e a distância daquela sonoridade para todas as outas e você montou a sequência de acordes perfeita para aquele som acústico, voz e violão, baseado numa mistura de Legião Urbana e Alexander Scriabin. Como você descreve essa progressão de modo que seja minimamente compreensível para botar numa cifra ou num leadsheet e compartilhar com o resto da banda? É aí que entra o sistema incrível de cifragens proposto por Julio Herrlein em Combinatorial Harmony: Concepts and Techniques for Composing and Improvising. O livro de Herrlein é extenso e explora várias cardinalidades, escalas, ciclos intervalares e eixos tonais. Não vou descrevê-lo inteiro, mas focar na cifragem dos tricordes. Recomendo a leitura!

    A cifragem de Herrlein é baseada – como a nossa produção dos tricordes – em uma tipologia dos acordes pela sua construção. É importante notar que Herrlein assume uma nota como tônica para a descrição de cada acorde e esta nota raramente é a primeira nota das formas prima ou normal dos conjuntos ou a nota a partir da qual construímos o tricorde por intervalos.

    O Tipo A contém as tríades tradicionais, cifras da forma usual. O Tipo B contém os acordes formados por quartas e são cifrados pela qualidade e ordem das quartas. CQ3 descreve o tricorde de quartas justas (027); CQT descreve o tricorde formado por uma quarta justa seguida de um trítono (016) e CTQ descreve o tricorde formado por um trítono seguido de uma quarta justa (056). 

    O Tipo C contém os acordes com sétima sem a quinta e são notados: ou removendo notas de uma tétrade – por exemplo 3-4A (015) notado como C#7M(¬5) (Dó sustenido maior com sétima maior sem a quinta); ou notados com intervalos sobre uma nota – por exemplo 3-7A (025) notado como D^m7 (Ré com terça e sétima menores adicionadas); ou com uma descrição qualitativa – por exemplo 3-8 (026)  notado como Dit (ré com sexta italiana) – mas que poderia ser notado como D7(¬5).

    O tipo D contém os acordes de sétima sem a terça e são notados como notas adicionadas a um som. O tricorde 3-3B (034) é notado como E^7M(#5), ou seja, Mi com sétima maior e quinta aumentadas adicionadas. O tipo E são os clusters e contém todos os acordes construídos por segundas. Eles são notados também com notas adicionadas sobre um tom: 3-2A (013), por exemplo, é notado como Db^7M(9), ou seja, Ré bemol com sétima maior e nona adicionadas.

    Abaixo compilei uma tabela com cada um dos tricordes, seu tipo, a cifra, o voicing (isso é, como as notas estão dispostas, ascendentemente, na versão fechada, a partir da nota que Herrlein define como fundamental do acorde) e, por fim, o intervalo usado para produzir o tricorde – como discutido neste texto.

    ConteúdoCCTipoCifraVoicingIntervalo de Produção
    0123-1EDb^7M(b9)102Segundas
    0133-2AEDb^7M(9)103Segundas
    0233-2BED^7(b9)203Segundas
    0143-3ACC#^m7M140Mistos (semitom)
    0343-3BDE^7M(#5)403Mistos (semitom)
    0153-4ACDb7M(¬5)150Mistos (semitom)
    0453-4BDF^7M(5)504Mistos (semitom)
    0163-5ABDbQT160Quartas
    0563-5BBF#TQ605Quartas
    0243-6ED^7(9)204Segundas
    0253-7ACD^m7250Mistos (pentatônicos)
    0353-7BDF^7(5)503Mistos (pentatônicos)
    0263-8ACDit ou D7(¬5)260Mistos (tons inteiros)
    0463-8BDF#^7(b5)604Mistos (tons inteiros)
    0273-9BDQ3270Quartas
    0363-10ACdim036Terças
    0373-11AACm037Terças
    0473-11BAC047Terças
    0483-12ACaug ou C(#5)048Terças

    No livro, Herrlein descreve várias formas de tocar esses acordes na guitarra, mas, novamente, não tenho intenção de transcrever o livro dele aqui. Acesse o dicionário de tricordes que disponibilizei em um post acompanhando este para explorar alguns voicings.

    Spoilers

    Em postagens futuras, vou comentar outros usos tonais destes conjuntos, como o proposto por Dariusz Terefenko interpretando-os como estruturas superiores de acordes extendidos ou o sistema de compressão modal genérica de Mick Goodrick. Também outras formas de nomear acordes e escalas como o sistema de de Masaya Yamaguchi. Mas quero dar uma palhinha.

    Sobre a interpretação de Terefenko, é fácil ver, como, por exemplo, o tricorde 027 pode ser usado como parte de vários acordes diatônicos. Por exemplo GQ3/D (isso é 705 tocado sobre 2 no baixo) soa como um Dm7(11). GQ3/Ab e CQ3/Ab soam como Abmaj7(13) e Ab(9) respectivamente.

    A compressão modal genérica de Mick Goodrick diz respeito a pegar um acordescala, por exemplo Cmaj7(9,11,13), remover a tônica que resultaria num conjunto hexatônico (24579B) e organizá-lo como dois tricordes complementares dentro da escala. No nosso exemplo, poderiamos organizar a compressão modal genérica de dó maior como Dm (259) e Em (47B). Obviamente, tricordes mais ousados soariam mais interessantes.

    O sistema de nomeação de Yamaguchi usa a mesma notação da teoria de conjuntos, mas atribui M para a inversão e descreve qual rotação do conjunto se trata numerando-as com a,b,c, etc, sendo que a é a primeira inversão (a forma normal). Além disso atribui os intervalos baseados na escala maior. O conjunto que chamamos de F^7(5), por exemplo, seria um 3-7Mc, a terceira rotação de 3-7 invertido e seria descrito como 1 5 b7 – que poderíamos reescrever como F 5 b7.

    Referências

    Arnold, Bruce. My music: explorations in the application of 12 tone techniques to jazz composition and improvisation. Muse Eek, 2003.

    Cope, David. Techniques of the contemporary composer. Schirmer Thomson Learning.

    Goodrick, Mick, and Tim Miller. Creative chordal harmony for guitar: using generic modality compression. Berklee Press, 2012.

    Herrlein, Julio. Combinatorial harmony: concepts and techniques for composing and improvising. Mel Bay Publications, 2013.

    Kostka, Stefan, and Matthew Santa. Materials and techniques of post-tonal music. Routledge, 2018.

    O’Gallagher, John. Twelve-tone improvisation: a method for using tone rows in jazz. Advance music, 2021.

    Okazaki, Miles. Fundamentals of Guitar: A Workbook for Beginning, Intermediate or Advanced Students. Mel Bay Publications, 2015.

    Persichetti, Vincent. Twentieth Century Harmony: Creative Aspects and Practice. W. W. Norton & Company, 1961.

    Roig-Francolí, Miguel A. Understanding post-tonal music. Routledge, 2021.

    Straus, Joseph N. Introduction to post-tonal theory. WW Norton & Company, 2016.

    Terefenko, Dariusz. Jazz theory: From basic to advanced study. Routledge, 2014.

    Yamaguchi, Masaya. The Complete Thesaurus of Musical Scales. Masaya Music, 2006.

  • O que é um ciclo intervalar?

    Um ciclo intervalar é uma estrutura musical gerada pela repetição sucessiva de um intervalo fixo dentro de um sistema de classes de alturas – como o sistema de 12 tons iguais usado na música ocidental. Um ciclo intervalar é produzido somando-se iterativamente um intervalo a uma nota inicial até atingir esta nota outra vez. Um exemplo muito simples é a escala cromática, tocada nota a nota ascendentemente. Ela é produzida pelo ciclo intervalar de um semitom: C C# D D# E F F# G G# A A# B C.

    No sistema temperado de 12 tons é possível gerar 11 ciclos utilizando intervalos simples:

    Ciclo de segundas menores – 1 semitom: C C# D D# E F F# G G# A A# B C
    Ciclo de segundas maiores – 2 semitons: C D E F# G# A# C
    Ciclo de terças menores – 3 semitons: C Eb Gb A
    Ciclo de terças maiores – 4 semitons: C E G# C
    Ciclo de quartas justas – 5 semitons: C F Bb Eb Ab Db Gb B E A D G C
    Ciclo de quartas aumentadas – 6 semitons: C F# C
    Ciclo de quintas justas – 7 semitons: C G D A E B F# C# G# D# A# F C
    Ciclo de sextas menores – 8 semitons: C G# E C
    Ciclo de sextas maiores – 9 semitons: C A F# Eb C
    Ciclo de sétimas menores: C Bb Ab Gb E D C
    Ciclo de sétimas maiores: C B Bb A Ab G Gb F E Eb D Db C

    Ciclos de dois, três e quatro semitons. Note que vou utilizar cN para descrever o ciclo de N semitons e que a nota inicial e final (quando presente) do ciclo estarão vazadas. Evitei atribuir qualquer valor rítmico aos ciclos e sugiro interpretá-los, inicialmente, em tempo livre.
    Ciclo de segundas maiores (um tom)
    Ciclo de terças menores (três semitons)
    Ciclo de terças maiores (quatro semitons)
    Ciclos de cinco e seis semitons. Atente à mudança de clave no ciclo de quartas justas.
    Ciclo de quartas justas (cinco semitons)
    Ciclo de quartas aumentadas/quintas diminutas (seis semitons)
    Ciclo de sete e oito semitons. Atente à mudança de clave no ciclo de quintas justas.
    Ciclo de quintas justas (sete semitons)
    Ciclo de sextas menores (oito semitons)
    Ciclos de nove e dez semitons. Atente à mudança de clave no ciclo de sétimas menores.
    Ciclo de sextas maiores (nove semitons)
    Ciclo de sétimas menores (dez semitons).
    Ciclo de onze semitons, representado como um ciclo de segundas menores (semitom) descendentes.
    Ciclo de onze semitons, tocado como um ciclo de segundas menores (semitom) descendentes.

    Observe que os ciclos de 11, 10, 9, 8 e 7 semitons podem ser pensados como versões de trás pra frente (ou seja, retrógradas) dos ciclos de 1, 2, 3, 4 e 5 semitons respectivamente. Optei por notá-los como um intervalo ordenado ascendente para destacar algumas propriedades deles que serão relevantes mais tarde. A exceção é o ciclo de 11 semitons, que ocuparia uma quantidade muito grande de oitavas (de fato, maior que a tessitura do piano) e optei por notar como um ciclo de segundas menores descendentes.

    Ciclo de oito semitons e ciclo de quatro semitons descendente. Observe que as mesmas classes de notas são tocadas, mas em direção contrária.
    Ciclo de oito semitons seguido do ciclo de quatro semitons descendente.

    Assim, em certo sentido, temos na verdade seis famílias de ciclos que contêm, cada uma, à exceção do ciclo de seis semitons, uma versão ascendente uma descendente de uma classe de intervalo: um semitom (segundas menores e sétimas maiores), um tom (segundas maiores e sétimas menores), um tom e meio (terças menores e sextas maiores), dois tons (terças maiores e sextas menores), dois toms e meio (quartas e quintas justas) e três tons (quartas aumentadas – que não são inversíveis). Dependendo do contexto e do propósito, fará mais sentido pensar os ciclos intervalares de um ou de outo modo, o que explicarei mais detalhadamente adiante. No momento – e antes de considerar cada ciclo individualmente – quero destacar algumas qualidades gerais dos ciclos intervalares.

    Qualidades gerais dos ciclos intervalares

    Todos os ciclos intervalares possuem algumas qualidades comuns que os tornam, no geral, interessantes. Em primeiro lugar, todo ciclo intervalar repete-se após uma quantidade específica de oitavas e, portanto, divide esta quantidade de oitavas em partes iguais. Alguns ciclos dividem uma única oitava em uma quantidade de partes antes de repetirem-se. Chamarei estes de ciclos oitavantes. No sistema temperado, estes são os ciclos de segundas menores (doze partes), segundas maiores (seis partes), terças menores (quatro partes), terças maiores (três partes) e quartas aumentadas (duas partes). 

    Um segundo conjunto de ciclos são os ciclos que repetem-se após mais de uma oitava que chamarei de ciclos não-oitavantes. Estes ciclos dividem uma quantidade maior de oitavas em uma quantidade de partes. No sistema temperado, estes ciclos são os ciclos de quartas justas (cinco oitavas em doze partes), quintas justas (sete oitavas em doze partes), sextas menores (duas oitavas em três partes), sextas menores (três oitavas em quatro partes), sétimas menores (cinco oitavas em seis partes) e sétimas maiores (onze oitavas em doze partes).

    Em segundo lugar, como divide um espaço de notas (n oitavas) em partes iguais, todo ciclo é simétrico e, portanto, não possui, a priori – uma hierarquia tonal. Isso é, não é possível determinar uma tônica do ciclo pois todas as notas dele possuem a mesma gravidade tonal. Isso nos leva a terceira qualidade: o ciclo possui transposições limitadas, ou seja: uma quantidade limitada de transposições do mesmo ciclo antes de obtermos o mesmo resultado. Por exemplo, o ciclo de quatro semitons possui quatro transposições possíveis: C E G# | Db F A | D F# A# | Eb G B. A próxima transposição (E G# C) é idêntica à primeira (C E G#), mas começando em E em vez de C. Como os ciclos não possuem tônica começar em C ou E é indiferente, exceto pelo registro em que as notas ocupam, de modo que eles são o mesmo ciclo.

    Transposições do ciclo de quatro semitons. Observe que estou notando c4 – para ciclo de quatro semitons – e TN, onde N é o número de transposições, a partir de C, que o ciclo está transposto. Observe também que ainda que começe em E, c4 T4 contém as mesmas notas que c4 T0: C E G#.
    Transposições de c4 (T0, T1, T2, T3 e T4, que é possui o mesmo conteúdo de T0).

    Cada transposição de um ciclo intervalar cria um conjunto único de notas sem interseções com outras transposições, de modo que a combinação de todas as transposições diferentes de um ciclo gera a escala cromática sem repetir nenhuma nota.

    Por fim, os ciclos possuem relações uns com os outros, de modo que cada um pode participar ou gerar os outros ciclos. No exemplo acima, por exemplo, as quatro transposições do ciclo de terças maiores geram a escala cromática, que pode ser expressa como um ciclo de um, cinco, sete ou onze semitons. No exemplo abaixo, o ciclo de quartas justas (c5) foi construído sobre o ciclo de sextas maiores (c8).

    Ciclo de cinco semitons construído sobe o o ciclo de 8 semitons.

    A relação entre cada ciclo e a escala cromática gera um caminho para relacionar um ciclo ao outro e aninhar cada ciclo dentro da escala cromática, mas há outras relações entre eles que exploraremos na próxima seção.

    Um pouco mais sobre cada ciclo

    Além das qualidades gerais dos ciclos, cada ciclo possui qualidades próprias que os tornam especificamente interessantes. Nesta seção, apresentarei um pouco sobre cada ciclo, suas qualidades e relações com os outros ciclos. Por simplicidade começaremos com os ciclos oitavantes.

    O ciclo de segundas menores divide a oitava em doze partes iguais e é o único ciclo não-oitavante que possui todas as notas da escala cromática e somente uma transposição. Isso quer dizer que as notas resultantes do ciclo são as mesmas independentemente de sobre qual nota construirmos o ciclo. Para pensar ciclicamente, este ciclo é pouco útil, mas ele pode ser usado de maneira truncada (isto é só parte dele) para estruturar progressões axiais – sequências de acordes, geralmente da mesma qualidade, seguindo um ciclo intervalar – ou para ornamentações. Todos os outros ciclos são versões truncadas dele. 

    Ciclo de um tom

    O ciclo de segundas maiores divide a oitava em seis partes iguais, possui duas transposições e algumas relações dignas de nota com todos os outros ciclos. Em primeiro lugar, as famílias de ciclos de quatro e seis semitons são versões truncadas dele e ele pode ser pensado como uma combinação de ambas: um ciclo de quatro semitons construído sobre cada nota do ciclo de seis semitons ou um ciclo de seis semitons construído sobre um ciclo de quatro semitons.

    Transposições do ciclo de segundas maiores (dois semitons).
    Transposições do ciclo de segundas menores (dois semitons).
    Ciclo de dois semitons ordenado como combinações de c4 e c6. No primeiro compasso, um ciclo de quatro semitons é construído sobre cada nota de um ciclo de seis. No segundo com passo, um ciclo de seis semitons é construído sobre cada nota de um ciclo de quatro semitons. Observe que, para clareza da leitura, omiti a última nota (repetição da primeira) dos ciclos usados.
    Ciclo de dois semitons tocado como dois c4 construídos sobre um c6 seguido de um c2 construído como três c6 construídos sobre c4.

    O ciclo de quintas – e consequentemente a escala cromática – pode ser pensado como uma combinação das duas transposições do ciclo de segundas maiores. Se tocarmos o ciclo de quintas como uma quinta ascendente e uma quarta descendente, a sequência de notas mais agudas forma uma iteração do ciclo de segundas menores e a sequência de notas mais graves forma a outra iteração.

    Ciclo de sete semitons (quintas justas) ordenado como dois ciclos de segundas maiores (dois semitons) distantes uma quinta.
    c7 tocado como dois c2 a uma quinta justa de distância. Note que, para facilitar a audição dos três ciclos simultaneo,s a voz superior (c2 começando em sol) está na flauta, enquanto a voz inferior (c2 começando em dó) está no piano.

    Combinando partes dos dois ciclos é possível criar uma passagem totalmente cromática com a melodia seguindo uma transposição do ciclo e o acompanhamento seguindo outro. Isso mantém a sonoridade de tons inteiros, mas resulta num ambiente mais cromático. Também é possível formar acordes extraindo as vozes superiores de uma iteração e as inferiores de outra.

    O pianista e educador de jazz Barry Harris desenvolveu uma teoria fascinante que explora essa propriedade do ciclo de tons inteiros. De forma poética, ele descreve a escala cromática como o todo ou deus, e as duas escalas de tons inteiros como um casal que gera filhos. Esses filhos são acordes formados pela combinação de pares de trítonos retirados de cada escala. Por exemplo:

    • De uma iteração da escala (C, D, E, F#, G#, A#), extraímos C e F#.
    • Da outra iteração (C#, D#, F, G, A, B), extraímos Eb e A.
    • Juntas, essas notas formam um acorde diminuto (C-Eb-F#-A).

    A partir desse acorde diminuto, Harris demonstra como transformar as notas para gerar os outros acordes básicos de sua teoria:

    • Acorde dominante: Baixe qualquer nota do acorde diminuto por um semitom.
      • Exemplo: Baixando Eb para D em C-Eb-F#-A, obtemos D7.
    • Acorde menor com sexta maior: Suba qualquer nota por um semitom.
      • Exemplo: Subindo F# para G, obtemos Cm6 (ou Am7b5 em outra inversão).
    • Acorde maior com sexta maior: Baixe duas notas consecutivas.
      • Exemplo: Baixando C para B e Eb para D, temos D6 (ou Bm7 em inversão).
    • Acorde dominante com quinta diminuta: Suba ou baixe quaisquer duas notas não consecutivas.
      • Exemplo: Subindo Eb e A, temos C7b5; baixando, temos D7b5.

    Embora o foco deste texto não seja a teoria de Barry Harris, sua abordagem ilustra uma ideia poderosa: extrair subconjuntos (díades, tricordes, etc.) de diferentes iterações de um ciclo para criar acordes e texturas. Não explorarei aqui os acordes específicos que poderiam ser gerados com essa técnica, mas, caso haja interesse, posso apresentar uma explicação detalhada em outra publicação.

    Ciclo de três semitons (sesquitom)

    O ciclo de três semitons forma o familiar acorde de sétima diminuta que já discutimos parcialmente nos parágrafos acima. Este ciclo possui três transposições e o ciclo de seis semitons é uma versão truncada dele. O ciclo de quartas justas (5 semitons) pode ser dividido em três vozes com cada uma seguindo uma transposição do ciclo distando uma quarta justa entre si ou como quatro tricordes quartais construídos sobre o ciclo de terças menores.

    Transposições do ciclo de terças menores (três semitons). Observe que a próxima transposição hipotética, c3 T3, conteria as mesmas notas de c3 T0.

    Uma derivação interessante do ciclo de três semitons é a escala octatônica ou segundo modo de transposição limitada. Ela é formada pela combinação entre quaisquer duas transposições deste ciclo, possui, assim como o ciclo de três semitons, três transposições e uma estrutura simétrica. Esta escala também pode ser gerada removendo uma transposição deste ciclo da escala cromática, ou seja, a escala octatônica é o complemento cromático do ciclo de três semitons.

    As três transposições possíveis da escala octatônica geradas como resultado da combinação de duas transposiçõs de c3. Observe que em cada compasso temos o conteúdo de notas de uma escala octatônica, mas ordenado como um par de ciclos de terças menores.
    As três transposições da escala octatônica, tocadas como combinações de dois c3. Observe que, no áudio, cada escala é tocada como uma combinação de dois c3 e é seguida de uma pausa.

    Ciclo de quatro semitons (ditom)

    O ciclo de quatro semitons é idêntico ao acorde aumentado. Este ciclo possui quatro transposições e é um subconjunto do ciclo de dois semitons (que pode ser formado por dois ciclos de quatro semitons distando uma segunda maior ou uma quarta aumentada). O ciclo de quintas justas (7 semitons) pode ser dividido em quatro vozes, cada uma seguindo uma transposição do ciclo ou como quatro três tetracordes quintais construídos sobre as notas do ciclo.

    Transposições de c4.
    Transposições de c4
    c7 construído sobre c4.
    c7 construído sobe c4.

    Ele pode ser combinado mesmo pra formar três escalas diferentes: a hexatônica aumentada, a escala de tons inteiros e o terceiro modo de transposição limitada (Terceiro M.T.L. na imagem abaixo). Combinando um ciclo com o ciclo um semitom acima ou abaixo geramos a hexatônica aumentada; dois tons acima ou abaixo geramos a escala de tons inteiros. Combinando quaisquer três transposições, geramos o terceiro modo de transposição limitada – que também pode ser gerado removendo uma transposição do ciclo de 4 semitons da escala cromática, ou seja: o terceiro modo de transposição limitada é o complemento cromático deste ciclo.

    Combinação de c4 T0 e c4 T3 gerando a escala Hexatônica Aumentada. Observe que c4 T3 tem as mesmas notas que c4 T11 que estaria um semitom abaixo de c4 T0.
    Escala hexatônica aumentada tocada como combinação de c4 T0 e c4 T3 e depois como uma escala.
    Combinação de c4 T0 e c4 T3 para formar a escala de tons inteiros (c2)
    Escala de tons inteiros tocada como combinação de c4 T0 e c4 T2. Em seguida tocada como uma escala.
    Combinação de três transposições de c4 para formar o terceiro modo de transposição limitada (M.T.L.) descrito por Olivier Messiaen.
    Terceiro modo de transposição limitada tocado como combinação de três transposições de c4. Em seguida tocado como uma escala.

    Ciclo de seis semitons (tritom)

    O ciclo de seis semitons possui duas notas consistindo somente num trítono. Ele é um subconjunto dos ciclos de um, dois, três, quatro, cinco, sete, nove, dez e onze semitons e possui seis transposições. A princípio, este ciclo, consistindo de somente duas notas razoavelmente distantes, parece, em si, de pouco interesse; mas gostaria de levantar uma observação realizada por Olivier Messiaen em Técnica de Minha Linguagem Musical: 

    “Um ouvido muito apurado percebe claramente um Fá sustenido na ressonância natural de um Dó grave. Esse Fá sustenido possui uma atração em direção ao Dó, que se torna sua resolução natural. Estamos diante do primeiro intervalo a ser escolhido: a quarta aumentada descendente.” (Messiaen, 1944, p.31)

    E é curioso notar: ele realmente usa a quarta aumentada como resolução melódica ou como o enquadramento dentro do qual a progressão se dá. Exemplos simples podem ser encontrados na voz de Poèmes pour Mi, no primeiro movimento Les Corps glorieux (exemplo citado por ele mesmo no livro) e em basicamente qualquer melodia dele.

    O ciclo de seis semitons se torna mais interessante para a nossa discussão, entretanto, quando pensamos na combinação das 6 diferentes transposições que ele possui: de todos os ciclos ele é o que gera a maior variedade de estruturas quando combinado com suas transposições.

    Seis transposições de c6. Observe que o hipotético c6 T6, conteria as mesmas notas que T0.

    Para nomear essas estranhas formações, utilizarei a classificação de conjuntos da teoria pós-tonal criado por Allen Forte. Detalhar esta nomenclatura, a lógica os números de Forte e as outras práticas da teoria de conjuntos pós-tonal ficará para outro momento. Para este texto, só utilizarei a classificação para dar algum nome a essas estruturas. O importante é saber que ela é uma estrutura a-b onde a é o número de notas na estrutura e b é um ordenamento da lista. Por exemplo 5-35 – o equivalente na teoria de conjuntos da coleção pentatônica – é o trigésimo quinto conjunto dos conjuntos de cinco notas na lista de Forte. Alguns conjuntos possuem ainda uma notação extra: A ou B, onde A é a forma primária e B é a forma invertida.

    Há três resultantes possíveis da combinação de duas transposições do ciclo de seis semitons, todos os três simétricos. O primeiro, que resulta da combinação de um ciclo com outro ciclo a um semitom ou cinco semitons de distância, poderia ser interpretado como um acorde quartal construído por uma quarta aumentada, uma quarta justa e uma quarta aumentada. Seu número Forte é 4-9 e ele é um subconjunto da escala octatônica. O segundo, que resulta da combinação de um ciclo com outro ciclo a dois ou quatro semitons de distância, pode ser interpretado como um dominante com quinta diminuta.eu número Forte é 4-25 e é um subconjunto da escala de tons inteiros (ciclo de segundas maiores) e do terceiro modo de transposição (que discutimos anteriormente neste texto). O terceiro, que resulta da combinação de um ciclo com outro a uma terça menor de distância, forma o acorde de sétima diminuta (ciclo de terças menores) que discutimos anteriormente neste texto. Seu número Forte é 4-28.

    Combinação de duas transposições de c6 a um semitom de distância para formar 4-9.
    4-9 tocado como duas combinações de dois c6 a um semitom de distância, seguido de uma interpretação quartal.
    Combinação de duas transposições de c6 a um tom de distância formam 4-25, que pode ser interpretado como um acorde dominante com quinta diminuta.
    4-25 tocado como duas combinações de duas transposições de c6 a dois semitons de distância, seguido de sua interpretação como C7b5 em posição fechada.
    Combinação de duas transposições de C6 a três semitons de distância resultando em um ciclo de terças menores.
    Dois c6 a três semitons de distância formando 4-28. Ciclo de terças menores contendo o mesmo conteúdo de notas. C diminuto.

    Há quatro resultantes da combinação de três transposições do ciclo de seis semitons. Três ciclos separados por semitom geram o conjunto 6-7, o quinto modo de transposição limitada de Messiaen. Este conjunto pode ser pensado como dois tricordes quartais separados por um trítono – ou, em outra inversão, como dois acordes suspensos separados por um trítono. 

    Combinação de três transposições de c6 resultando em 6-7. Pode ser interpretado como dois tricordes quartais construídos sobre c6.
    6-7 tocado como três trítonos distando um semitom, seguido de como escala, seguido de uma interpretação como dois tricordes quartais e suas inversões como acordes suspenso.

    Três transposições do ciclo de seis semitons separados por um tom geram a escala de tons inteiros que já discutimos (6-35). As duas últimas combinações (6-30A e 6-30B) são peculiares: elas não são simétricas e, portanto, são inversíveis, sendo uma inversão da outra.

    Combinação de três c6 para formar as duas inversões de 6-30.
    6-30A tocado como três transposições de c6 e como escala seguido de 6-30B.

    Por inversão uma da outra quero dizer que elas possuem o mesmo padrão intervalar, mas em um caso ascendente e em outro caso descendente. As tríades maiores e menores, por exemplo, são inversão uma da outra – no sentido pós-tonal de inversão, que não deve ser confundido com o sentido tonal de inversões de um acorde. Começando em dó e ascendendo três e depois quatro semitons temos C Eb G – a tríade de dó maior; descendo três e depois quatro semitons temos C A F – a tríade de Fá menor. No caso de 6-30, o padrão é 1, 2, 3, 1, 2 semitons ascendentes no caso de 6-30A e descendentes no caso de 6-30B.

    Interessante notar que 6-30 (A e B) são subconjuntos da escala octatônica, cabem dentro de um intervalo de nove semitons – ou seja, podem estar interpolados em um ciclo de sextas maiores – e podem ser gerados por duas tríades (menores no caso de A, maiores no caso de B) distando seis semitons. Stravinsky, em Petrushka, utilizou regularmente 6-30B tocado como duas tríades maiores.

    6-30A construído como duas tríades menores construídas sobre c6. 6-30B construído como duas tríades maiores construídas sobre c6.
    6-30A tocado como duas tríades menores e 6-30B como duas tríades maiores.

    A combinação de quatro transposições do ciclo gera 3 conjuntos (8-9, 8-25 e 8-28), que, não coincidentemente, são os complementos cromáticos das combinações de 2 ciclos (4-9, 4-25 e 4-28). Os três também são, respectivamente o quarto, o sexto e o segundo modos de transposição limitada.

    Quatro transposições de c6 distando um semitom resultando em 8-9, que pode ser interpretado como dois acordes de sétima maior construídos sobre c6.
    8-9 tocado como quatro c6 a um semitom de distância, seguido de 8-9 tocado escalarmente e sua interpretação como Dmaj7 e Abmaj7.
    8-25 tocado como quatro c6 em T0, T1, T2 e T4, depois escalarmente e depois interpretado como C#mMaj7 e GmMaj7.
    Quatro transposições de c6 a T0, T1, T3 e T4 resultando em 8-28, a escala octatônica, que pode ser interpretado como dois tetracordes diminutos.
    8-28 tocado como quatro transposições de c6, escalarmente e como dois tetracordes diminutos.

    8-9 possui seis transposições, repete-se idêntico sobe o trítono e pode ser pensado como a combinação de dois acordes de sétima maior distando um trítono. 8-25 também possui seis transposições e pode ser pensado como uma combinação de dois acordes menores com sétima maior construídos sobre c6. 8-28, por fim, possui 3 transposições e pode ser pensado como uma combinação de dois tetracordes diminutos (c3).

    Por fim, há uma combinação de 5 transposições do ciclo de 6 semitons: 10-6, o sétimo modo de transposição limitada. Ele é gerado pela única forma de combinar as 5 transposições: sobre uma sequência de 5 semitons ou substraíndo uma transposição do ciclo de seis semitons da escala cromática. Duas características me chamam atenção: em primeiro lugar, ela contém tanto da escala de tons inteiros (ic2) quanto da escala octatônica (combinação de dois ic3) – e consequentemente os outros subconjuntos que discutimos em relação ao ic6; em segundo lugar, ela pode ser pensada como uma combinação de duas escalas pentatônicas distando um seis semitons.

    Cinco transposições de c6 resultando em 10-6, que pode ser interpretado como duas coleções pentatônicas construídas sobre c6.
    10-6 tocado como cinco transposições de c6, escalarmente e como duas pentatônicas maiores construídas sobre c6.

    A segunda qualidade, em especial, é útil porque essa resultante é tão cromaticamente saturada que é de pouca utilidade para pensar escalarmente ou ciclicamente, a menos que possamos construir outras lógicas sobre ela; e.g.: pensá-la como uma pentatônica sendo transformada por ciclo de seis semitons. No exemplo abaixo, abri as pentatônicas como dois acordes cuja sonoridade me agrada e circulei eles pelo ciclo, buscando abrir cada resultante seguindo um padrão ascendente e com movimento de vozes por grau conjunto. O resultado é uma harmonia meio quartal, mas bastante cromática.

    No sistema de cima: 10-6 como cois voicings pentatônicos. No sistema de baixo: uma progressão de voicings pentatônicos alternando entre as duas escalas pentatônicas que formam 10-6.

    Ciclos não-oitavantes

    Os ciclos não-oitavantes gerados por intervalos simples possuem uma relação direta com os ciclos oitavantes: à exceção dos ciclos de quarta e quintas justas (que são inversão um do outro e são ambos não-oitavantes), eles contém as mesmas notas dos ciclos oitavantes da mesma família de ciclos, mas retrógrados (tocados de trás pra frente). Isso porque, ainda que sejam intervalos diferentes, são inversões um dos outros e participam da mesma classe de intervalo. Um intervalo de 4 semitons ascendente é uma terça maior, descendente é uma sexta menor. Neste sentido, podemos pensar, por exemplo, o ciclo de 8 semitons como um ciclo de terças maiores retrógrado, mas tocado ascendentemente.

    Isso faz com que, em geral, os ciclos de 8, 9, 10 e 11 semitons possuam as mesmas qualidades que discutimos em relação aos ciclos de 4, 3, 2 e 1 semitons respectivamente. Para algumas aplicações, como a geração de padrões melódicos e escalas como as descritas por Slonimsky e outras estruturas sem repetição de oitava, pensá-los na versão original e não-oitavante faz mais sentido e gera um resultado diferente de identificá-lo com o ciclo oitavante; para outras aplicações, como progressões axiais, pensá-los como um ciclo oitavante retrógrado pode fazer mais sentido.

    Em Thesaurus of scales and melodic patterns, Nicolas Slonimsky descreve uma série de escalas e padrões melódicos construídos principalmente sobre ciclos intervalares como os discutidos até aqui. As notas do ciclo – que Slonisky descreve como divisões de uma quantidade de oitavas – formam os tons principais, sobre os quais três operações podem ser realizadas:

    Escalas e padrões melódicos são formados pelo processo de Interpolação, Infrapolação e Ultrapolação. A palavra Interpolação é de uso comum; aqui, ela significa a inserção de uma ou várias notas entre os tons principais. Infrapolação e Ultrapolação são termos criados. Infrapolação indica a adição de uma nota abaixo de um tom principal; Ultrapolação refere-se à adição de uma nota acima do próximo tom principal. A Infrapolação e a Ultrapolação resultam em uma mudança de direção, com a linha melódica progredindo em ziguezagues. Infrapolação, Interpolação e Ultrapolação podem ser combinadas livremente, resultando em formas hifenizadas: Infra-Interpolação, Infra-Ultrapolação e Infra-Inter-Ultrapolação.” (Slonimsky, 1947, p. ii)

    Algumas dessas operações resultam em escalas e estruturas que já discutimos – e.g.: por exemplo a interpolação de uma nota um tom acima de um ciclo de quatro semitons resulta na escala de tons inteiros (ciclo de dois semitons) e a interpolação de uma nota um semitom acima do ciclo de três semitons resulta na escala octatônica – enquanto outras resultam em ordenamentos específicos destas – e.g.: a interpolação de uma nota um tom acima de um tom principal e ultrapolação de uma nota uma terça maior acima do próximo resulta no terceiro modo de transposição limitada, como na imagem abaixo.

    Por outro lado, quando realizamos operações semelhantes em ciclos não-oitavantes, geramos escalas e padrões melódicos não oitavantes. No exemplo abaixo, o uma inter-ultrapolação sobre c8 gera uma coleção com as mesmas classes de notas que o segundo modo de transposição limitada, distribuídos ao longo de duas oitavas. 

    No exemplo abaixo, interpolei quatro notas em um ciclo de 9 semitons para gerar uma escala sem repetição de oitava com características dóricas (terça menor, sexta maior).

    No exemplo abaixo o ciclo de 4 semitons é interpolado no ciclo de 9 semitons:

    Há incontáveis possibilidades: melodias, padrões melódicos, escalas sem repetição de oitava, combinações de transposições e etc. Elas terão que ficar para outros textos. No momento, gostaria de passar ao último conjunto de ciclos: os ciclos de quarta e quinta.

    Os ciclos de Cinco e Sete semitons (Diatessarão e Diapente)

    Os ciclos de quarta e quinta justas também são retrógrado um do outro, mas nenhum dos dois cabe em uma oitava e, na verdade, ocupam, respectivamente, cinco e sete oitavas até se completar. Assim como os ciclos de segunda menor e sétima maior, os ciclos de quarta e quinta justas resultam numa distribuição específica da escala cromática. Para comprimi-los a uma oitava é preciso pensá-los como uma combinação de quintas e quartas ascendentes e descendentes.

    Como mencionei anteriormente, estes ciclos entretém relações com os ciclos de menor (por resultar no mesmo conteúdo de classes de notas: a escala cromática), o ciclo de segundas maiores (e sétimas menores, que resultam na escala de tons inteiros), o ciclo de terças menores e maiores. As escalas pentatônica e diatônica são versões truncadas dele (5 e 7 primeiros tons respectivamente). Mas é sua relação com o ciclo de segundas menores, através do ciclo de segundas maiores que me intriga e fornece algumas possibilidades de combinação.

    Um ciclo de quintas justas ascendente começando em dó, como notamos anteriormente, pode ser descrito como dois ciclos de segundas maiores intercalados e distando uma quinta justa. O ciclo de um semitom possui uma qualidade semelhante: ele pode ser descrito como dois ciclos de dois semitons distando um semitom de distância. Deste modo, se começarmos um ciclo de semitom e um ciclo de quintas justas eles serão descritos por dois ciclos de dois semitons, com um dos ciclos uma quarta aumentada de distância. Na imagem abaixo, é fácil de observar que a voz central contém c2 começando em dó – este ciclo é compartilhado por ambas. A voz superior contém c2 começando em G e a inferior começando em C#. Quando organizamos os ciclos c2 de modo a formar c1 e c7 temos uma progressão que resulta em um uníssono e um trítono a cada dois graus.

    O que me chama a atenção nisso é que podemos combinar uma progressão em c7 (ou c5) com uma progressão em c1 (ou c11, c1 descendente), para formar uma alternância entre duas estruturas. No exemplo abaixo (que Flô Menezes atribui, em A Apoteose de Schoenberg a Alban Berg), a voz inferior segue c5, enquanto as três vozes superiores (que formam um tricorde vienense, isso é, de baixo pra cima, uma quarta aumentada e uma quarta justa) seguem um c11, tocado como c1 descendente. O resultado é um dominante extendido alternando entre um acorde dominante com nona aumentada e um dominante com décima terceira até retornar ao ponto de partida.

    A mesma lógica funcionaria para qualquer outra estrutura superior e o resultado é menos formulaico do que parece. Cabe ao leitor, testar outras possibilidades

    Para concluir

    O legal dos ciclos intervalares é como eles nos fazem pensar diferentemente sobre espaços de notas. Mesmo no sistema tonal, a diferença aparece no movimento dentro de um ciclo – em especial o ciclo de quintas, por onde deslocam-se, distanciam-se e aproximam-se as diferentes tonalidades. No caso de um pensamento musical pós-tonal, a noção de ciclo nos convida a reconceber a ideia de um espaço de notas a partir da multipolaridade, da simultaneidade de forças iguais e contrárias para além de um dodecafonismo estrito. É que, como disse, a simetria dos ciclos intervalares impede que, a priori, se possa definir um centro tonal e e uma hierarquia intervalar: é preciso encarar cada nota em estado puro.

    Em textos posteriores, quero explorar alguns usos de ciclos intervalares: progressões axiais, sistemas multi-tônica, mais escalas não-octavantes e suas propriedades, padrões melódicos, escalas simétricas e modos de transposição limitada. Este texto já ficou longo demais com um simples sobrevôo e acredito que cada um destes tópicos rende mais um bocado de palavras.

    Referencias

    Kingstone, Alan James, and Barry Harris. The Barry Harris harmonic method for guitar. Jazzworkshop productions, 2006.

    Messiaen, Olivier. The technique of my musical language [trad. John Satterfield].

    Schillinger, Joseph. The Schillinger System of Musical Composition. New York: Da Capo Press, 1946.

    Slonimsky, Nicolas. Thesaurus of Scales and Melodic Patterns. New York: Schirmer Books, 1947.

    Straus, Joseph N. Introduction to post-tonal theory. WW Norton & Company, 2016.

    Susanni, Paolo; Elliott Antokoletz. Music and twentieth-century tonality: Harmonic progression based on modality and the interval cycles. Routledge, 2012.

    Yamaguchi, Masaya and David Demsey. John Coltrane Plays “Coltrane Changes”. Milwaukee: Hal Leonard, 2003.