Categoria: Materiais

  • Modalismo (parte 1): Fundamentos

    Lembro-me que, quando estudando baixo, meu primeiro instrumento, fui introduzido aos modos gregos sem entender bem do que se tratava ou pra que serviam: já não estava sabendo utilizar propriamente as escalas maior, menor e suas variações e me aparecem mais escalas! Não ajudava o fato de que em qualquer lugar encontramos livros, métodos, cursos e outros materiais sobre tonalismo, seus usos, suas nuances e exterioridades, enquanto que, sobre modalismo, geralmente encontramos uma lista dos modos da escala diatônica com o título: “SAIBA TUDO SOBRE OS MODOS GREGOS!”. É claro que há muito Rock, Jazz, MPB e Pop que utiliza escalas e práticas modais ou pelo menos hibridismos modais-tonais. Mas uma teoria modal é difícil de encontrar ou um guia de como pensar e usar os modos – para além de “eis essas notas” – me fez falta. Anatol Vieru (1985) descreve a situação:

    Na confrontação entre tonalismo e antitonalismo, os modos aparecem como um “terceiro mundo”; a comparação com o mundo político contemporâneo pode ser um tanto superficial, mas certas semelhanças são impressionantes. Enquanto o tonalismo está cristalizado em regras claras, e o atonalismo também cristalizou-se na teoria permutacional do serialismo, o modal parece um mundo difuso, retrógrado, não evoluído. Para muitas pessoas, os modos são cor, e não essência; emoção, e não pensamento musical construtivo.

    É como se, no tonalismo e no serialismo, fossem oferecidos materiais – escalas, acordes, séries, complementaridades etc – e uma lógica, uma gramaticalidade – direcional no caso tonal e idiossincrática no caso do serialismo – que informa o uso do material, enquanto no modalismo só fosse dado o material: tome esta coleção de notas, eis o modalismo. A teoria pós-tonal de conjuntos e o atonalismo livre, parece-me, sofrem de um mal parecido: tome uma lista imensa de materiais e faça música. É claro que isso pode ser libertador: materiais sem história, que podem ser usados como nos der na telha, mas, pelo menos no caso do modalismo, isso não é verdadeiro. O modalismo é, necessariamente, localizado: o modo dórico, por exemplo, não é o mesmo no canto gregoriano, em O Pedido de Elomar e em So What de Miles Davis. As notas podem ser as mesmas, mas há lógicas diferentes, que são referências extra musicais localizadas.

    Neste texto, não me proponho a resolver esse problema, mas discutir algumas noções e práticas modais a partir da coleção diatônica e de algumas classes de conjunto de sete notas que compartilham com ela uma característica que me interessa. Como discutirei em breve, é impossível construir uma teoria modal total, algo que daria conta das lógicas localizadas. Em vez disso, quero analisar os materiais, suas possibilidades e características de modo que o leitor possa localizá-las em suas próprias referências.

    Este texto pressupõe alguma familiaridade com teoria pós-tonal de conjuntos e com nomeação de escalas. Creio que o texto Que acorde é esse? forneça informação suficiente.

    Modos e Modalismos

    Antes de discutir modos específicos, quero diferenciar uma classe de conjunto, uma escala e um modo. Segundo Vincent Persichetti:

    Um tom central ao qual os outros sons se relacionam pode estabelecer a tonalidade, e a maneira como esses sons são organizados em torno do tom central produz a modalidade. Muitos padrões de escala foram usados por compositores do século XX, mas sete se destacam dos demais devido à sua ordem de tons e semitons. Cada um possui um caráter especial, e qualquer tom pode ser usado como tônica. (Persichetti, 1961, p. 31)

    O “padrão de escala” a que ele se refere é a coleção diatônica ou 7-35 (0 1 3 5 6 8 10). A classe de conjunto 7-35 é uma entidade abstrata, uma estrutura intervalar não instanciada em notas específicas. As realizações dela com classes de notas específicas são conjuntos de classes de notas, por exemplo, 7-35 T11 – isso é transposta a 11 semitons – contém as notas 11 0 2 4 5 7 9 (ou B C D E F G A), que geralmente concebemos como C D E F G A B ou a coleção diatônica natural – ou seja, sem acidentes. Geralmente chamamos essa instância específica de 7-35 de Escala de Dó Maior e 7-35 em geral de escala diatônica. Um modo específico desta escala depende da definição de uma nota central em relação a qual as outras serão organizadas, segundo a definição de Persichetti. Se a nota central for, por exemplo C, falamos em C maior (no caso tonal) ou C jônio (no caso modal); se for D falamos em D dórico. Por central, não queremos dizer centralidade geométrica, mas musical, ou seja: D é a nota em relação à qual as outras são ouvidas. Isso geralmente pode ser atingido ou pela repetição da nota no início e no fim das frases, pela presença dela em um baixo pedal, pela repetição dela ao longo da música etc.

    Deste modo, uma classe de conjunto ou escala – no sentido de escala diatônica – é uma coleção intervalar não instanciada, que instancia-se em uma transposição específica, formando um conjunto de classes de notas. Ao definirmos uma tônica, temos um modo.

    Costas Tsougras oferece, a partir de Mantle Hood, uma definição mais abrarngente e que, na minha visão, define mais um modalismo específico do que o que chamamos de modo:

    Segundo Mantle Hood (1971: 324), o conceito de modo abrange quatro características que representam o espectro completo entre a escala generalizada e a melodia particularizada: “As características básicas do modo parecem incluir:  1) uma escala com lacunas, 2) uma hierarquia de alturas principais, 3) o uso de notas ornamentais e 4) associação extramusical.” Assim, um modo é uma entidade complexa que inclui, além das classes de alturas de uma escala, uma hierarquia de alturas, fórmulas de cadência típicas, figurações melódicas e referências semânticas. Essas ideias contradizem o conceito de modalidade adotado na música do século XX, segundo o qual os modos são apenas tipos de escala e a eventual adoção de melodias folclóricas é apenas um elemento de caráter étnico. Ambos os conceitos podem coexistir durante a audição de uma obra modal, dependendo da natureza e das origens da obra. O conceito de modo do século XX talvez tenha se originado no uso de material da música folclórica, mas de modo algum se limita a ele. (TSOUGRAS, 2009)

    Um modo, neste sentido, é semelhante a um Raag: não só uma coleção de notas hierarquizadas em torno de uma tônica, mas um uso que inclui fórmulas cadenciais, ornamentos e sentidos – que, insisto, são localizados. É por se referir a um uso específico de uma coleção hierarquizada de notas que prefiro reservar a esta definição o termo modalismo: uma prática. Se pode portanto falar, como Ermelinda Paz, de um modalismo na música popular brasileira ou, como, Ron Miller, de um modalismo no Jazz, mas não de O modalismo. De qualquer modo, podemos construir um modo instanciando uma classe de conjuntos e determinado uma tônica, mas para construir um modalismo, precisamos de práticas específicas e significações extramusicais – essa tarefa deixo ao leitor.

    Sem cohemitonia

    Neste texto vou focar em coleções de sete notas. Em The modal method of music, R. G. Bedwell aponta que:

    Existem exatamente 66 escalas de sete notas, contendo no total 462 modos, e ainda assim as escalas em uso comum se resumem a poucas; apenas a escala maior, a menor harmônica, a menor melódica — e nem todos os seus modos — além de uma escala diminuta ou aumentada aqui e ali.
    (Bedwell, p. 8)

    As 66 escalas de sete notas às quais Bedwell se refere são as classes de conjuntos de sete notas (e suas inversões, quando existentes). Ainda que todas possam ser interessantes em determinado contexto, vou limitar-me às escalas que, como a escala diatônica, não possuem cohemitonias, ou seja, não possuem semitons adjacentes, por exemplo C C# e D (3-1 T0). A ausência de cohemitonias cria escalas mais espaçadas, mais bem distribuídas dentro de uma oitava, reduz o atrito cromático e a ambiguidade modal. Isso não preclui o uso do tricorde cromático como ornamentação ou nota de passagem sobre o modo, mas, estruturalmente, evita ambiguidades e enfraquecimento melódico.

    Das classes de cardinalidade 7, somente 4 não possuem cohemitonias: 7-31, 7-32, 7-34 e 7-35. As coleções 7-31 e 7-32 são inversíveis e portanto temos 6 escalas sem cohemitonia para discutir.

    A classe 7-35 não é inversível e inclui a escala diatônica e os modos gregos. A classe 7-34 também não é inversível e inclui a escala menor melódica e seus modos. A classe 7-32 é inversível: 7-32A incluir a escala menor harmônica e seus modos e 7-32B inclui a escala maior harmônica e seus modos. Prefiro referir-me à 7-32A como escala maior aumentada e seus modos por entender que este é o modo primário, ainda que menos usual, uma vez que é o modo com menos alterações (#5) em relação à escala maior diatônica enquanto a menor harmônica envolve duas alterações (b3 b6). A classe 7-32 é inversível, de modo que 7-32A inclui a família da escala menor harmônica com quinta aumentada e seus modos e 7-32B a família da escala menor harmônica com quinta diminuta.

    No resto da parte I deste texto, discutirei a coleção diatônica a fim de estabelecer algumas noções e práticas modais para serem discutidas nas outras escalas.

    A coleção diatônica e os modos gregos

    A coleção diatônica é a coleção que dá origem aos modos gregos e as tradicionais escalas maior e menor natural. Por convenção, dizemos que o jônio ou modo maior – aquele que começa em C na diatônica natural – é o primeiro modo e utilizamos a sua estrutura intervalar como referência para a definição dos outros modos e escalas. O modo mixolídio, por exemplo, é idêntico ao jônio exceto pela sétima menor (b7) em lugar da sétima “natural” do jônio (7); o modo eólio diferencia-se por conter b3, b6 e b7. Utilizando a mesma escala, 7-35 T11 (11 0 2 4 5 7 9), produzimos os outros modos, mas começando em notas diferentes.

    ModoIntervalos em relação à tônica
    JônioC D E F G A B C2 3 4 5 6 7
    DóricoD E F G A B C D2 b3 4 5 6 b7
    FrígioE F G A B C D Eb2 b3 4 5 b6 b7
    LídioF G A B C D E F2 3 #4 5 7
    MixolídioG A B C D E F G2 3 4 5 6 b7
    EólioA B C D E F G A2 b3 4 5 b6 b7
    LócrioB C D E F G A Bb2 b3 4 b5 b6 b7

    Modos diferentes contendo as mesmas classes de nota, como acima, são modos relativos. Mas podemos construir os modos todos sobre a mesma tônica e neste caso teremos os modos paralelos.

    ModoIntervalos em relação à tônica
    JônioC D E F G A B C2 3 4 5 6 7
    DóricoC D Eb F G A Bb C2 b3 4 5 6 b7
    FrígioC Db Eb F G Ab Bb Cb2 b3 4 5 b6 b7
    LídioC D E F# G A B C2 3 #4 5 7
    MixolídioC D E F G A Bb C2 3 4 5 6 b7
    EólioC D Eb F G Ab Bb C2 b3 4 5 b6 b7
    LócrioC Db Eb F Gb Ab Bb Cb2 b3 4 b5 b6 b7

    A modulação entre dois modos relativos se faz alterando a nota central dentro de uma coleção dada, por exemplo, entre C jônio e D dórico, altera-se C para D como nota central. A modulação entre dois modos paralelos se faz mantendo nota central e alterando-se a estrutura intervalar em relação a ela. Entre C jônio e D dórico, muda-se de 3 e 7 (E B) para b3 e b7 (Eb Bb). Por fim a modulação por transposição ocorre quando movemos a tônica e junto com ela a estrutura, por exemplo de C frígio para A frígio.

    Um tipo particular de modulação paralela nos interessa: àquela em que a alteração na estrutura intervalar altera somente uma nota por um semitom. Por exemplo, entre C jônio e C mixolídio a sétima desce um semitom e entre C jônio e C lídio somente o quarto grau sobre um semitom.

    C lídioC D E F# G A B
    C jônioC D E F G A B
    C mixolídioC D E F G A Bb

    É possível conceber a distância entre quaisquer dois modos da escala diatônica como uma série de alterações deste tipo, que também descreve uma progressão de brilhância dos modos. Descendo a lista, estamos descendo também um semitom sobre um dos graus; subindo a lista estamos subindo um semitom.

    Modo
    C lídioC D E F# G A B2 3 #4 5 7Mais brilhanteG jônio
    C jônioC D E F G A B2 3 4 5 6 7C jônio
    C mixolídioC D E F G A Bb2 3 4 5 6 b7F jônio
    C dóricoC D Eb F G A Bb2 b3 4 5 6 b7Bb jônio
    C eólioC D Eb F G Ab Bb2 b3 4 5 b6 b7Eb jônio
    C frígioC Db Eb F G Ab Bbb2 b3 4 5 b6 b7Ab jônio
    C lócrioC Db Eb F Gb Ab Bbb2 b3 4 b5 b6 b7Mais escuroDb jônio

    Outras modulações

    Observe que é sempre o sétimo grau do jônio relativo que é alterado ao descer (Bb do C jônio, F# de G jônio) e quarto grau do jônio relativo ao subir (Eb de Bb jônio, Gb de Db jônio). A modulação paralela ordenada desta forma segue a transposição, pelo ciclo de quintas, da coleção de referência. Nos extremos – isso é C lídio e C lócrio – a única alteração que reconduz à coleção diatônica resulta em uma transposição e modulação paralela: C lídio vira C# lócrio e C lócrio vira Cb lídio (enarmônico a B lídio). Observe que, apesar da modulação peculiar, a coleção ainda é transposta uma pelo ciclo de quintas quando observamos do ponto de vista do jônio relativo.

    C# lócrioC# D E F# G A Bb2 b3 4 b5 b6 b7D jônio
    C lídioC D E F# G A B2 3 #4 5 6 7G jônio
    C lócrioC Db Eb F Gb Ab Bbb2 b3 4 b5 b6 b7Db jônio
    Cb lídioCb Db Eb F Gb Ab Bb2 3 #4 5 6 7Gb jônio
    B lídioB C# D# E# F# G# A#2 3 #4 5 6 7F# jônio

    Podemos estender a lógica de modular sobre o sétimo grau do jônio relativo para os outros graus, algo que Bedwell explora em detalhes no livro Modal Method of Music. Na tabela abaixo, cada grau é aumentado e diminuido para gerar outra escala. Na linha do meio, a escala natural (C jônio) é apresentada. Na linha acima de, por exemplo C, o conjunto de classes de notas resultante de subir o C um semitom para C# é apresentado. Na linha abaixo, o mesmo, mas em descendo C para B. Observe que, em alguns casos, como no supracitado, a escala resultante possui somente seis notas (C vira B que já existe em C jônio).

    +17-34 T17-30 T36-33 I57-35 T67-32 T87-29 T106-32 T0
    Escala maiorCDEFGAB
    -16-33 T27-30 I47-34 T116-32 T77-29 I97-32 I117-35 T4

    Algumas das classes geradas serão imediatamente úteis para nós:  7-32A e B e 7-34 encaixam-se no pré-requisito de não terem cohemitonias. 7-29 e 7-30, por sua vez, possuem cohemitonias e serão desconsideradas (exceto como conjuntos de passagens em modulações maiores). As resultantes de cardinalidade 6 (6-33A e B) também serão desconsideradas. No momento interessa-nos a possibilidade de descrever 7-32A e B e 7-34 como alterações da escala diatônica:

    1. 7-32A é a família da escala maior aumentada ou Jônio #5 (2 3 #5 6 7). Nesta família, costumamos usar como referência a escala menor melódica, mas ela é descrita com mais alterações – ou como Jônio b3 b6.
    2. 7-32B é a família da escala maior harmônica ou Jônio b6 (2 3 5 b6 7).
    3. 7-34 é a família da menor melódica. Se a descrevermos a partir do Jônio de origem (que teve seu primeiro grau aumentado) teríamos ou um Jônio #1 – o que é absurdo – ou a escala alterada Jônio b2 b3 b4 b5 b6 e b7, o que também é absurdo. Outra opção é descrevê-la como Jônio b3 – já que reduzimos o E para Eb resultando em 7-34 T11 ou simplesmente chamá-la de menor melódica ou Dórico ♮7 – Dórico com a sétima “desbemolizada”.

    Ainda que as desconsideremos neste texto, as outras classes resultantes de sete notas são interessantes e vale mencionar um pouco mais sobre sua estrutura e nomenclatura.

    1. 7-29A gera a família do Jônio #6 que inclui o Dórico aumentado (2 b3 4 #5 6 b7)
    2. 7-29B gera a família do Jônio b5 que inclui o Superlídio aumentado (#2 #3 #4 #5 #6 7), que é a operação contrária àquela que gera a escala alterada (diminuir todos os graus ou subir a tônica, naquele e o contrário neste).
    3. 7-30A gera a família do Jônio #2  que inclui o Mixolídio aumentado (2 3 4 #5 6 b7) e a escala harmônica dupla (b2 b3 4 5 b6 7).
    4. 7-30B gera a família do Jônio b2 que inclui o lídio harmônico maior (2 3 #4 5 b6 7)

    A construção a partir de tetracordes

    Outra noção importante sobre a estrutura dos modos é a sua geração a partir de pares de tetracordes. Tetracordes, neste contexto, são conjuntos de 4 notas limitados ao intervalo de uma quarta aumentada. Por exemplo, C jônio pode ser divido em dois tetracordes C D E F / G A B C. Observe que para que o método de tetracordes dê certo é preciso que a primeira e a última classe de notas sejam a mesma, neste caso C e o número total de classes de notas seja 7. Isso implica que entre um e outro tetracorde haverá um intervalo – geralmente de 1 ou 2 semitons. 

    Ron Miller (1996) descreve 4 tetracordes diatônicos e 4 tetracordes cromáticos. Os tetracordes diatônicos são gerados pelas quatro primeiras notas dos modos e recebem os nomes lídio ou 4-21 (0246), jônio ou 4-11B (0245), dórico ou 4-10 (0235) e frígio ou 4-11A (0135).

    Os modos diatônicos são gerados como combinações destes tetracordes em combinações específicas:

    ModoTetracordeConteúdo
    LídioLídio + JônioC D E F# | G A B C 
    JônioJônio + JônioC D E F | G A B C
    MixolídioJônio + DóricoC D E F | G A Bb C
    DóricoDórico + DóricoC D Eb F | G A Bb C
    EólioDórico + FrígioC D Eb F | G Ab Bb C
    FrígioFrígio + FrígioC Db Eb F | G Ab Bb C
    LócrioFrígio + LídioC Db Eb F | Gb Ab Bb C

    Um mínimo de atenção revela que as sete combinações usadas não esgotam nem as combinações possíveis entre os tetracordes diatônicos – e evidentemente já excluímos da conta os tetracordes cromáticos de Miller. Se considerarmos somente o critério de ter cardinalidade 4 e o intervalo total ser limitado a uma quarta aumentada, entretanto, há 20 tetracordes que podem ser combinados para gerar escalas – o que é um exercício para outro momento. Considerando somente os tetracordes diatônicos, podemos gerar as 16 escalas listadas abaixo. Observe que a coluna à esquerda lista o primeiro tetracorde e a linha superior o segundo.

    LídioJônioDóricoFrígio
    LídioTons inteirosLídioLídio b7Lídio b6 b7
    JônioLócrio maiorJônioMixolídioMixolídio b6
    DóricoLócrio ♮2Menor MelódicaDóricoEólio
    FrígioLócrioFrígio ♮6 ♮7Dórico b2Frígio

    Ou, usando a linguagem da teoria de conjuntos:

    4-21 T64-11 I74-10 T74-11 T7
    4-21 T06-357-357-347-33
    4-11 I07-337-357-357-34
    4-10 T07-347-347-357-35
    4-11 T07-357-337-347-35

    A emergência de escalas não diatônicas – e uma escala de cardinalidade 6 (a escala de tons inteiros) – pode sugerir parentescos e conexões a serem explorados entre os modos. entre, por exemplo Lídio b7 e Dórico b2 há um tetracorde em comum, que pode ser usado como pivô para uma modulação. 

    Tratarei em mais detalhes os outros tetracordes quando forem necessários às escalas discutidas. Considerando nossa limitação – escalas sem cohemitonia, 12 tetracordes serão usados.

    Notas características

    As notas características – àquelas que dão a coloração específica de um modo – dos modos diatônicas são fáceis de determinar: elas são aquelas envolvidas no único trítono contido na escala e estão envolvidas nos dois semitons – para onde tendem a resolver. No modo Frígio, por exemplo, o b2 e 5 são as notas características e tenderiam a resolver para 1 e 6 respectivamente – o que, em certo sentido, arruinaria a tensão modal.

    Entretanto, em favor de usá-las como modelo paradigmático para analisar as outras escalas deste texto, é preciso de um modelo melhor. Podemos considerar três:

    1. Um modelo localizado, baseado no uso da escala, uma vez que as notas características de uma escala não são puramente um fenômeno físico ou matemático, mas são dependentes das práticas e dos contextos onde são utilizados;
    2. Um método fenomenológico, baseado na percepção na escuta da escala. As notas características são aquelas que se destacam ao ouvido. 
    3. Um método comparativo, como proposto por Miller, em relação à escala mãe, ou seja, as notas características seriam as notas estranhas da escala em relação a uma escala mais usual.

    Os métodos 2 e três são abordagens diferentes de uma mesma abordagem: identificar onde a escala difere e destaca-se em relação às outras. A comparação mais comum é com o jônio ou com o eólio. No lídio, por exemplo, o quarto grau aumentado é ao mesmo tempo o que lhe diferencia do jônio e ao mesmo tempo o que, no ouvido, se destaca pela brilhância que adiciona. No frígio o segundo grau menor diferencia-o do eólio ao mesmo tempo em que destaca-se no ouvido pela tensão.

    Como um modo é uma organização de notas em relação à tônica, todas as notas em conjunto dão a característica do modo, ainda que umas sejam mais características deste ou daquele. Quando falamos em notas características, é melhor falar em uma hierarquia ou prioridade de notas são características do modo. Sobre os modos diatônicos, Miller propõe a seguinte priorização:

    ModoHierarquia de características
    Lídio#47369(5)
    Jônio (1)743695
    Jônio (2)73965
    Mixolídio (1)b743694
    Mixolídio (2)b73685
    Dórico6b3b7954
    Eóliob625b3b74
    Frígiob254b7b3b6
    Lócriob5b2b7b6b34

    Observe que no lídio a quinta é opcional (marcada entre parênteses) e no jônio e mixolídio a quarta pode ser omitida, sendo altamente características de ambos caso presentes. Isso porque, em ambos os casos, possuem forte implicação tonal, sendo cadencial no jônio e meta tonal no mixolídio, ou seja: cria tensão no jônio, tendendo a resolver pra terça, e soa como resolução no mixolídio (em especial quando aproximado por grau conjunto). Observe também que a quarta e a quinta, excetuando quando são notas características – quarta no caso do lídio, jônio (1) e mixolídio (1) e quinta no frígio e lócrio – agregam pouco à característica do modo. Ainda: as notas que são alteradas na modulação paralela tendem estar entre as notas mais características da escala. De fato, excetuando o dórico, a nota mais característica é justamente a nota alterada na última modulação do caminho modulatório entre o jônio e o modo. No caso do dórico, a sexta aparece como nota característica, uma vez que tendemos a ouvi-la em relação à mais usual escala menor natural ou eólio.

    Um destaque é importante, nas palavras de Miller, “a ordem é a justada para se conformar à prática comum” (1996, p. 20), neste caso à prática comum no jazz. Em outros contextos, essa hierarquia pode ser adaptada de outro modo seja apartir da localização de uma prática específica, seja a partir de uma abordagem auditiva.

    Acordes primários e secundários

    As notas características são os graus característicos do modo, os acordes primários são o mesmo, mas de um ponto de vista vertical. Nesta seção vou discutir os acordes modais a partir de uma abordagem triádica – isso é, focada nos tricordes maiores ou 3-11B, menores ou 3-11A, diminutos 3-10 e, apesar de não aparecerem nos modos diatônicos, aumentados 3-12. Segundo Persichetti (1961, p.32), referindo-se aos modos lídio, mixolídio, dórico e frígio:

    O sabor distintivo desses quatro últimos modos é explorado por meio de progressões harmônicas nas quais o grau característico da escala aparece com frequência. Esse tom impede que o modo se torne uma escala maior ou menor natural. Por exemplo, uma passagem lídia em D deve conter uma alta porcentagem de acordes que incluam a nota G♯ (quarta aumentada); caso contrário, o sabor lídio será perdido.

    O jônio e o eólio são excluídos por coincidirem com as escalas maior e menor natural, enquanto o lócrio é excluído por ser pouco usado – e bastante instável. Entretanto, podemos seguir a mesma lógica, partindo da hierarquia de notas características para estes modos e definir as tríades primárias e secundárias. Segundo Persichetti, os acordes primários são a tríade construída sobre a tônica e dois acordes análogos a dominantes “que incluem o grau característicos da escala”. Entretanto, alerta para evitar a tríade diminuta, uma vez que sugere fortemente uma resolução para o jônio relativo, funcionando como Đ9 da tonalidade maior.

    No lídio, por exemplo, os acordes primários são I, II e vii, C, D e Bm em C lídio. I ou C é o acorde construído sobre a tônica e contém a terça e a quinta. II ou D contém o quarto grau aumentado (F#) e eo sexto grau (A). vii ou Bm contém o sétimo grau (B), o quarto grau aumentado (F#) e o nono grau (9 ou 2). Os acordes secundários são iii, vi#dim e V, respectivamente, em C, Em, F#dim e G. Em contém o sétimo, que Miller aponta como segunda nota mais característica do modo. Entretanto, esta nota só se destaca caso estejamos modulando paralelamente de um modo com sétima menor. F#dim contém a quarta aumentada, a sexta e a tônica, mas é excessivamente instável. G, por fim, contém a quinta, a sétima e a segunda do modo. Apesar da presença da sétima, este acorde acaba por sugerir (por exemplo em C-G-C) o jônio ou a tonalidade maior. Curiosamente, se utilizarmos acordes com sétima, Gmaj7 torna-se um acorde característico e a oscilação Cmaj7-Gmaj7-Cmaj7 se torna uma progressão característica do modo, como usada por Satie.

    Não vou exaurir o leitor com uma explicação detalhada das tríades primárias e secundárias de cada modo, mas convido-o a fazer o exercício por si mesmo. Entretanto, é preciso dizer algo sobre o jônio e o eólio. Para isso, é preciso introduzir as noções de acordes cadenciais primário e secundário, acordes não cadenciais e acordes a evitar propostas por Jeff Brent e Schell Barkley em Modalogy: scales, modes & chords

    Acordes cadenciais primários e secundários

    A noção de cadência parece excessivamente impregnada de tonalismo, mas se quisermos analisar ou compor progressões ou sequências de simultaneidades modais que expressem o modo e gerem movimento é preciso discutir como. É, como apontam Brent e Barkley, necessário primeiro estabelecer a tônica do modo antes de mover-se para outros acordes e também estabelecer – na melodia, na harmonia ou em ambos – as características do modo. Isso se faz utilizando os acordes cadenciais primários e secundários, além do acorde construído sobre a tônica. Os acordes cadenciais são aqueles com maior tendência de resolver para o acorde construído sobre a tônica. Brent e Barkley introduzem 4 orientações para avaliar o grau de potencial cadencial de um acorde:

    1º Distância da fundamental do acorde, sendo que, em contexto modal, o movimento por grau conjunto tem prioridade sobre o movimento por quartas e quintas – ou, para usar a linguagem que discuti no texto sobre sistemas multi-tônicas, o C7 tem prioridade sobre C5.
    2º A qualidade do acorde, sendo que acordes contendo a terça maior do que aqueles contendo a terça menor
    3º A presença de notas características
    4º Evitação da tríade diminuta.

    A partir destas orientações – encaradas outra vez hierarquicamente – é possível determinar os acordes cadenciais primários (semelhantes aos dominantes tonais) e secundários (semelhantes aos pré-dominantes tonais). 

    No caso do jônio, Brent e Barkley indicam que o quarto grau (F em C) é o grau característico em lugar da sensível (B) defendida por Miller e sugerem dividir ou evitar o trítono na construção dos acordes. O acorde cadencial primário seria então o II, Dm em C: a fundamental é construída a um grau conjunto da tônica, inclui a nota característica e evita a tríade diminuta. F é o acorde cadencial secundário, já que contém a nota característica e evita a tríade diminuta, mas dista uma quarta justa. Em também pode ser usado como cadencial, mas o movimento por terças é mais fraco e o movimento iii-I também existe no lídio. Por outro lado, ele inclui a outra nota característica do modo, o sétimo grau (B em C) e poderia ser utilizado como pré-dominante, por exemplo em: Em-Dm-C ou Em-F-C. A tríade diminuta e o acorde sobre o sétimo grau são acordes a evitar pelas suas implicações tonais.

    No caso do eólio, o sexto grau (b6) é a nota característica e acordes que a contém são iiº, iv e bVI, em C eólio: Dº, Fm e Ab. O que nos coloca a alguns problemas: 1) Dº ou iiº inclui a nota característica, a fundamental move-se por grau conjunto para a tônica, mas é o acorde diminuto; 2) Fm ou iv inclui a nota característica, mas dista uma quarta e é um acorde menor e 3) Ab ou bVI inclui a nota característica mas dista uma terça, ainda que seja menor. Brent e Barkley argumentam que o acorde cadencial seria o bVII ou Bb em C: é um acorde maior com a fundamental construída a um grau conjunto da tônica. Ainda, adiciono, ele inclui outra nota característica do modo: o segundo grau. Se utilizado junto com qualquer um dos acordes que incluem b6 (iiº, iv e bVI) pode expressar bem o modo em uma progressão.

    Considerando isso, podemos consolidar duas visões sobre os acordes triádicos dos modos:

    Primários(Persichetti)Secundários(Persichetti)Cadenciais PrimáriosCadenciais Secundários
    LídioI, II, viiiii, V, viIIvii, V, (iii)
    JônioIImIV, iii
    MixolídioI, v, bVIIii, IV, vibVIIv, ii, IV
    Dóricoi, ii, IVbIII, v, bVIIbVIIIV, ii, v
    EóliobVIIiv, v, iiº, bVI
    Frígioi, bii, viibIII, iv, bVIbiibvii, iv

    Se considerarmos os modos em C:

    Primários(Persichetti)Secundários(Persichetti)Cadenciais PrimáriosCadenciais Secundários
    LídioC, D, BmEm, G, AmDBm, G, Em
    JônioDmF, Em
    MixolídioC, Gm, BbDm, F, AmBbDm, Gm, F
    DóricoCm, Dm, FEb, Gm, BbBbDm, F, Gm
    EólioBbFm, Gm, Dº, Ab
    FrígioCm, Db, BbmEb, Fm, AbDbBbm, Fm

    Há conflitos e desacordos, mas creio que podemos usar um pouco de cada modelo – a depender do contexto e do resultado desejado – para explorar harmonia triádica sobre modos. É claro que também podemos explorar os modos utilizando outras estruturações harmônicas. O uso de acordes de sétima muda pouco a primariedade dos acordes e progressões e o leitor pode seguir a mesma lógica para construir e analisar eles. Por outro lado, podemos usar outros tipos de estruturações, não triádicas: acordes secundais, quartais, mistos etc, como os discutidos em Que acorde é esse?. A lógica para determinar quais seriam primários e secundários segue a mesma, ainda que seja preciso considerar a estabilidade dos tricordes usados.

    Compressão modal genérica

    Um modo interessante de usar tricordes em um contexto modal é a partir da noção de compressão modal genérica proposta por Mick Goodrick e Tim Miller em Creative Chordal Harmony. Em síntese, compressão modal genérica consiste em, dada uma escala de sete notas, suprimir a tônica e dividir o hexacorde resultante em dois tricordes complementares. Há, para cada escala de 7 notas, 10 pares de tricordes gerados a partir de compressão modal genérica, mas, para explicar o conceito, vou focar nas tríades. Na tabela abaixo, cada modo construído sobre C é comprimido removendo sua tônica. O conjunto resultante (de cardinalidade 6) é apresentado segundo a nomenclatura da teoria de conjuntos e por fim o hexacorde é separado em um par de tríades.

    ModoTônicaModo comprimidoResultantePar de Tríades
    LídioCDEF#GAB6-32 T2D + Em
    JônioCDE5GAB6-33 T2Dm + Em
    MixolídioCDE5GABb6-Z25 I2Dm + Eº
    DóricoCDEb5GABb6-Z26 T2Dm + Eb
    EólioCDEb5GAbBb6-Z25 T2Dº + Eb
    FrígioCDbEb5GAbBb6-33 I1Db + Eb
    LócrioCDbEb5GbAbBb6-32 T1Db + Ebm

    A ideia, proposta por Goodrick, é supor que o a fundamental aparece no baixo e que, muitas vezes, a fundamental não é a nota mais importante para o solista, sendo, a depender do registro uma tensão. A partir disso, Goodrick afirma que, seja para construir melodias, seja para construir acompanhamentos, o músico poderia suprimir a tônica e focar nos pares de tricordes, assumindo que a fundamental fica no baixo. O lídio em C, por exemplo, poderia ser tocado como D e Em. No exemplo abaixo, tocadas sobre C.

    Em seguida, Goodrick pergunta-se sobre as duas outras tríades presentes no hexacorde resultante: G e Bm, elas também formam um par complementar? Não é necessária muita atenção para concluir que não: tanto G quanto Bm contém B e D. O complemento de G em relação ao hexacorde resultante contém F#, A e E e o complemento de Bm contém E, A e G. Seus pares complementares não são triádicos, mas tricordes como aqueles discutidos em Que acorde é esse? e que cifras como F#^m7 e A^7(5), seguindo o padrão apresentado naquele texto e no complemento Cifragem de tricordes. C lídio poderia então ser construído como G e F#^m7 ou Bm e A^7(5) sobre C.

    Há, para cada hexacorde resultante de compressão modal genérica, dez pares de tricordes. Abaixo, listo os pares de tricordes dos modos da escala diatônica construídos sobre C.

    C LídioC JônioC Mixolídio
    E^7(5) + G^7M(9)B^m7 + F^7M(9)Bb7M(¬5) + F^7M(9)
    B^m7 + F#^7(b9)A^7(9) + E^7(b9)A^7(b9) + E^7(b9)
    EQ3 + G7M(¬5)F7M(¬5) + GmajF7M(¬5) + Gm
    BQ3 + G7M(5)AQ3 + FTQBb7M(5) + E^m7
    A^7(9) + E^7(9)E^7(5) + G^7(9)AQ3 + FQT
    B^7(5) + E^m7B^7(b5) + E^m7BbTQ + G^7(5)
    F#^m7 + GmajBQ3 + G^7(5)E^7(b5) + G^7(9)
    A^7(5) + BmA^7(5) + BdimEQ3 + G^m7
    AQ3 + F#Q3EQ3 + G7(¬5)Bbmaj + A^7(5)
    Dmaj + EmDm + EmDm + Edim
    C DóricoC EólioC FrígioC Lócrio
    A^7(b9) + Eb^7M(9)Eb^7M(9) + Ab^7M(9)Eb^7(9) + Ab^7M(9)Eb^7(5) + Gb^7M(9)
    Bb7M(5) + Eb7M(¬5)Eb7M(5) + G^7(b9)Eb^7(5) + G^7(b9)Bb^m7 + F^7(b9)
    Bb7M(¬5) + F^7(9)Bb^7(5) + Eb7M(¬5)Bbm + Ab7M(5)EbQ3 + Gb7M(¬5)
    Eb7M(5) + G^7(9)Bbmaj + Ab7M(5)FQ3 + AbQTBbQ3 + Gb7M(5)
    BbQT + G^7(5)EbQT + G^m7Bb^m7 + F^7(9)Eb^7(9) + Ab^7(9)
    EbTQ + G^m7FQ3 + AbTQF^m7 + GdimBb^7(5) + Eb^m7
    F7(¬5) + GmBb7(¬5) + F^7(9)EbQ3 + G^m7Gbmaj + F^m7
    Bbmaj + A^7(b5)F^m7 + GmBb^7(5) + Eb7(¬5)Bbm + Ab^7(5)
    AQ3 + FQ3BbQ3 + G^7(5)BbQ3 + G^7(b5)FQ3 + AbQ3
    Ebmaj + DmEbmaj + DdimDbmaj + EbmajDbmaj + Ebm

    Cabe ao leitor analisar a utilidade, no contexto em que planeja utilizar, de cada um dos pares de tricordes. É importante considerar a distribuição da hierarquia de notas características entre os tricordes. A depender do contexto, estarem em majoritariamente em um ou distribuídos pode ser relevante. É importante também considerar como o par soa. Alguns soam excessivamente resolutivos para alguns contextos, ou tonais.

    De qualquer modo, não se deve conceber a compressão modal genérica como uma distribuição estática, mas como algo que pode ser utilizado para definir estruturas harmônicas para acompanhamento ou para embasar melodias. O interessante é conceber um modo como um par de tricordes construídos sobre um baixo, do mesmo modo em que podemos concebê-lo a partir de uma escala dada, de uma combinação de tetracordes, por intervalos característicos, como acordes primários e secundários ou progressões.

    Síntese e Próximo texto

    Neste texto, primeira parte de uma discussão mais longa, procurei construir uma base conceitual e metodológica para abordar o modalismo de maneira mais ampla do que a habitual apresentação dos “modos gregos”. Partindo da distinção entre classe de conjunto, escala, modo e modalismo, argumentei que modo e modalismo não dizem apenas respeito a uma ordenação intervalar, mas uma prática situada, com hierarquias internas, ornamentos, articulações harmônicas e sentidos extramusicais.

    A escolha da coleção diatônica como ponto de partida permitiu desenvolver ferramentas analíticas que poderão ser aplicadas a outras classes de conjunto heptatônicas sem cohemitonia. Vimos como:

    • modos podem ser construídos pela combinação de dois tetracordes;
    • notas características podem ser determinadas por audição, localização e comparação;
    • acordes modais podem ser hierarquizados por sua relação com essas notas;
    • e modos inteiros podem ser comprimidos em pares de tricordes sobre uma tônica, revelando estruturas harmônicas alternativas.

    A proposta aqui não é apresentar um sistema fechado, mas oferecer um conjunto de abordagens combináveis entre si, capazes de dar conta da diversidade de práticas modais.

    Na segunda parte deste texto, a ser publicada em breve, aplicarei essas ferramentas aos modos derivados das classes 7-31, 7-32 e 7-34. Explorarei as propriedades de cada uma, seus tetracordes constituintes, notas e acordes característicos, compressões possíveis, e modos de modulação. A ideia é ampliar o repertório de possibilidades harmônicas, melódicas e estruturais disponíveis a quem se interessa por práticas musicais modais que não dependem do sistema tonal — mas também não se limitam à livre atonalidade.

  • Interferência n#2: Sistemas Multi-Tônica

    Uma das possibilidades que mais me interessam a partir dos Ciclos Intervalares é a construção de sequências de simultaneidades (ou de escalas, de modos, de acordes, enfim, de materiais musicais mais ou menos constantes) sobre eles. Imagine, por exemplo, construir, sobre o ciclo de quartas aumentadas, tríades maiores, resultando na repetição cíclica de C e Gb. Imagine, agora que preenchamos a distância com outros acordes e talvez tenhamos algo como C6 | Abm7 Db7 | Gb6 | Abm7 G7. 

    Neste texto, discutirei as estruturas resultantes dessas possibilidades – que chamarei de sistemas multi-tônicas e progressões axiais – como uma interferência entre ciclos intervalares e classes de conjunto. Começarei definindo os dois conceitos e o exemplo paradigmático de Giant Steps. Em seguida, farei uma brevíssima revisão das noções de ciclos intervalares e de classes de conjunto de cardinalidade 3 (tricordes). Na discussão propriamente dita, introduzirei uma versão bastante simplificada da Teoria Especial de Harmonia de Joseph Schillinger, diferenciando harmonia diatônica, diatônica-simétrica e simétrica e debatendo ambas como interferências estruturas de fundamentais e qualidades de acordes (classes de conjuntos). Por fim, discutirei algumas comparações (modos de transposição limitada, padrões melódicos e escalas simétricas) e proporei alguns modos para aplicar toda essa discussão.

    Progressões Axiais e Sistemas Multi-tônica

    Os dois conceitos são relacionados – e até mesmo me parecem ser só olhares diferentes sobre uma mesma ideia – mas é importante defini-los de partida. Keith Waters define a noção de progressão (ou movimento) axial como “Movimento harmônico, melódico ou do baixo sequencial por um único intervalo (2ª menor, 2ª maior, 3ª menor, 3ª maior, etc.)”, que pode ser “elaborado por outras alturas” e geralmente “preservam o mesmo tipo de acorde (como M7) ao se moverem pelo eixo” (2019, p. xix). A sequência Cmaj7 Amaj7 F#maj7 Ebmaj7, por exemplo, é uma progressão axial sobre o eixo de 3 semitons descendente, ou, para usar a linguagem de “O que é um ciclo intervalar?”, sobre o ciclo de 9 semitons. De modo semelhante, progressões parciais (como Cmaj7 Amaj7 F#maj7) são progressões axiais parciais ou truncadas: elas seguem o eixo, mas não o completam.

    Um sistema multi tônicas, como definido por Steve Rochinski (2022), é uma técnica de modulação que distribui centros tonais por divisões simétricas da oitava, ou seja, sobre ciclos intervalares. Rochinski também aponta o uso de sistemas multi-tônica incompletos. Num contexto tonal, sistemas multi-tônicas geralmente demandam que os acordes que definirão as tônicas sejam tonicizados por cadências. No exemplo do início do texto (C6 | Abm7 Db7 | Gb6 | Abm7 G7), temos um sistema multitônica construído sobre c6 (seis semitons dividindo uma oitava em 2 partes iguais) centrados em C (0) e Gb (6) e Abm7 Db7 e Abm7 G7 funcionam como ii-V de Gb6 e C6 para tonicizá-los. Tradicionalmente, sistemas multitônicas mantém a mesma qualidade de acorde para cada uma das tônicas e os reservam aos acordes tônicos – ou seja, no nosso exemplo, as qualidades de acorde maior com sexta não devem aparecer nas outras partes da progressão. Rochinski entende que um sistema multi-tônica é diferente de uma progressão de estrutura constante, como seria simplesmente a alternação entre C6 e Gb6 (mesma qualidade de acorde – e preferencialmente mesmo voicing) e deve ter embelezamentos, prolongamentos e cadências.

    Ainda que, em ambos os casos, o uso tradicional seja destacar o movimento cíclico e, em certo sentido, paralelo entre as tônicas da estrutura, gosto de pensá-las modalmente também. Isso é: não realizá-la necessariamente como C6 para Gb6, mas de C jônio (024579B) para Gb jônio (68AB135) que podem ser substituídos por seus modos. Talvez C jônio para Ab dórico para F lídio para Gb jônio e assim por diante, alternando entre as duas transposições de 7-35 mas em rotações diferentes.

    Giant Steps

    Uma progressão de acordes tradicionalmente tonal – viiº-iii-vi-ii-V-I – e suas simplificações e variações, como as progressões utilizadas em I Got Rhythm (VI-ii-V-I e III-VI-II-V), são um caso pouco interessante de algo que pode ser lido como uma progressão axial ou sistema multi-tônicas parcial construída sobre o ciclo de quartas ascendentes (C5). Ainda que seja possível construir progressões axiais e sistemas multi-tônica sobre os ciclos de cinco e sete semitons (quartas e quintas justas), ou explicar, à força, progressões tonais a partir desta lógica, os casos mais interessantes residem nas progressões que resultam efetivamente em sistemas multi-tônica exteriores às formulas tonais.

    O caso mais notório – e o caso paradigmático apontado tanto por Rochinski quanto Waters – é a progressão de Giant Steps e as rearmonizações que Coltrane realizou sobre diversos standards usando progressões axiais e sistemas multi-tônica. Em Giant Steps, Coltrane circula rapidamente por três campos harmônicos maiores: B, G e Eb, tonicizados com ii-V7 ou V7. Na imagem abaixo, marquei com cores diferentes as regiões da música relativas a cada uma das multi-tônicas, inclui as cadências (ii-V7) que estabelecem cada tônica como parte da tonalidade resultante.

    Coltrane ascende e descende pelas tônicas e é difícil, pro ouvinte ou pra um improvisador, determinar qual das três notas seria a tônica da música. Difícil, mas também desnecessário: a ideia é justamente ocupar as três tônicas, circular entre elas para produzir um tonalismo cromático e metaestável.

    Breve Revisão: ciclos intervalares e classes de conjunto de cardinalidade 3

    Um ciclo intervalar é uma estrutura musical gerada pela repetição sucessiva de um intervalo fixo dentro de um sistema de notas. Esse ciclo é construído ao somar iterativamente um intervalo a uma nota inicial até que se retorne à mesma nota em uma oitava superior. Por exemplo, a escala cromática pode ser vista como um ciclo intervalar de segundas menores (semitons), em que cada nota é gerada somando um semitom à anterior (C, C#, D, D# etc.). Alguns intervalos geram ciclos intervalares que se repetem dentro de uma oitava (1, 2, 3, 4 e 6 semitons) ou maiores que uma oitava (5, 7, 8, 9, 10 e 11). Neste texto, vou me referir aos ciclos somente dentro de uma oitava, de modo que, por exemplo, o ciclo de 8 semitons (0 8 4 0) será simplesmente um ciclo de 4 semitons (0 4 8 0) descendente e agrupá-los por classe de intervalo e em quantas partes dividem a oitava.

    CicloDivisãoEquivalenteNotas geradas
    c112 partesc110123456789AB0
    c26 partesc1002468A0
    c34 partesc903690
    c43 partesc80480
    c512 partesc705A3816B49270
    c62 partes060

    Aqui a diferença entre progressão axial e sistema multi-tônicas tem alguma relevância. Em primeiro lugar, as progressões axiais sobre C5, C7, C11 e C1 são obviamente diferentes, mas um sistema multi-tônica construído sobre eles não é. Nos três casos, geram-se doze tônicas contendo toda a escala cromática em alguns casos contendo os mesmos acordes, entretanto, dependendo do processo, em especial dos coeficientes de recorrência, geramos sistemas multi-tônicas com qualidades de acorde diferentes entre eles. O mesmo vale para c9 e c3, por exemplo. Em segundo lugar, a direção de uma progressão axial sobre, por exemplo c4, é diferente da progressão sobre c8 (c4 descendente), enquanto num sistema multi-tônicas a ordem das tônicas é mais determinada pelo sentido da progressão (positiva ou negativa) e pelo movimento determinado pelo compositor entre as tônicas do que pela estrutura do ciclo gerador. Uma discussão mais aprofundada pode ser encontrada no texto O que é um ciclo intervalar?.

    Classes de conjunto são, por outro lado, abstrações de coleções de três classes de notas, para repetir a definição tradicional: são como que pequenos motivos dos quais a maior parte das características foram abstraídas até chegar no conteúdo de classes de notas e abstraídas mais uma vez para chegar a uma estrutura intervalar básica. Por exemplo, uma passagem que contém as notas da escala maior de fá, pode ser abstraída até chegar somente nas classes de nota – independente do registro, do ritmo, da ordem, da repetição de notas: 579A024 (ou F, G, A, Bb, C, D e E). Ela pode ser abstraída, por simplificação e rotação, de modo a ser organizada como uma estrutura intervalar +1 +2 +2 +1 +2 +2, representada, a partir de 0 como 0,1,3,5,6,8,T. Essa classe de conjunto, chamada 7-35 representa, abstratamente, todas as transposições de todos os modos da escala diatônica. O processo para chegar nessa abstração foi descrito no texto Que acorde é esse?.

    Algumas classes de conjunto são inversíveis e notamos as duas inversões como A e B, T e I, a depender do contexto. Os conjuntos concretos existem sempre em alguma transposição, a escala maior de fá, por exemplo, é 7-35 T4 (4579A02) – transposta 4 semitons – e o acorde de E maior é 3-11 I4. 

    Por simplicidade, pela quantidade manejável e pela possibilidade de compor estruturas maiores com facilidade, tenho optado por trabalhar com conjuntos de cardinalidade 3 ou tricordes, isso é: conjuntos de três classes de notas. Na tabela abaixo, retirada do texto Que acorde é esse?, listo todas as classes de conjunto de cardinalidade 3 possíveis no sistema de 12 tons e uma proposta de cifragem.

    ConteúdoCCTipoCifraVoicingIntervalo de Produção
    0123-1EDb^7M(b9)102Segundas
    0133-2AEDb^7M(9)103Segundas
    0233-2BED^7(b9)203Segundas
    0143-3ACC#^m7M140Mistos (semitom)
    0343-3BDE^7M(#5)403Mistos (semitom)
    0153-4ACDb7M(¬5)150Mistos (semitom)
    0453-4BDF^7M(5)504Mistos (semitom)
    0163-5ABDbQT160Quartas
    0563-5BBF#TQ605Quartas
    0243-6ED^7(9)204Segundas
    0253-7ACD^m7250Mistos (pentatônicos)
    0353-7BDF^7(5)503Mistos (pentatônicos)
    0263-8ACDit ou D7(¬5)260Mistos (tons inteiros)
    0463-8BDF#^7(b5)604Mistos (tons inteiros)
    0273-9BDQ3270Quartas
    0363-10ACdim036Terças
    0373-11AACm037Terças
    0473-11BAC047Terças
    0483-12ACaug ou C(#5)048Terças

    Obviamente, esses tricordes podem ser combinados, transpostos, realizados em diferentes rotações e aberturas… Caso tenha interesse, na seção “Complementos”, disponibilizei a cifragem de cada transposição destes conjuntos e um dicionário de formas acorde para os tricordes.

    Tricordes e ciclos ainda são materiais muito elementares: “o que eu faço com isso?” me parece a pergunta mais óbvia. Qualquer coisa, eu diria, mas também sei o quão paralisante é a página em branco e listas imensas de possibilidades. Num texto anterior (Tricordes como Interferência entre Ciclos Intervalares), tentei propor uma lógica de selecionar e organizar os tricordes a partir da interferência entre dois ciclos. O resultado é interessante: sequências de tricordes diferentes, mas internamente coerente, dotadas de uma direcionalidade intrínseca e de uma lógica de condução de vozes derivada dos mesmos ciclos que os geram, mas ainda são progressões prontas, excessivamente orgânicas talvez. A teoria de Schillinger, onde ciclos interferem com qualidades de acordes, oferece uma opção mais aberta.

    Teoria Especial da Harmonia de Joseph Schillinger

    A teoria especial de harmonia é o quinto livro do Sistema Schillinger de composição musical e usa conceitos introduzidos nos livros anteriores, além da linguagem matemática peculiar de Joseph Schillinger. Esta seção, por isso, não é uma introdução ou análise, mas uma pilhagem da teoria.

    O livro cobre diversos assuntos, mas vou focar nos primeiros tópicos discutidos, a saber: a harmonia diatônica, simétrica e diatônica-simétrica, que são três casos de combinação de dois mecanismos de seleção. Por um lado, temos a seleção da progressão de fundamentais dos acordes, que pode ser definida por uma escala (e um ciclo tonal interno à escala) ou por um ciclo intervalar (uma divisão simétrica da oitava). No primeiro caso, temos harmonia diatônica e diatônica simétrica, no segundo, simétrica. Por outro lado, temos a seleção das estruturas (ou qualidade) dos acordes, que pode ser feita a partir da escala (na harmonia diatônica) ou pré-selecionados (na harmonia simétrica e diatônica-simétrica).

    HarmoniaFundamentaisAcordes
    DiatônicaCiclos tonais internos à escalaRetirados da escala
    Diatônica-SimétricaCiclos tonais internos à escalaPré-selecionados
    SimétricaCiclos intervalares e divisões simétricas da oitavaPré-selecionados

    Um terceiro mecanismo, que não discutirei aqui, diz respeito à condução de vozes e à rotação dos acordes (voicing) sobre as fundamentais. Mas vale dizer que a introdução de acordes diversos à harmonia tonal, colocam problemas sobre condução de vozes e levantam o debate sobre a existência de contraponto pós-tonal. Como conduzir parcimoniosamente, por exemplo, entre 3-1 T0 e 3-7 T2?

    A prioridade deste texto é a harmonia simétrica, mas passarei pela harmonia diatônica e diatônica-simétrica porque elas possuem práticas em comum e uma progressão de complexidade.

    Harmonia diatônica

    A harmonia diatônica, como disse, retira o movimento das fundamentais e os acordes de uma mesma escala de referência. Schillinger, na teoria especial de harmonia, foca na escala diatônica, mas parece-me que funcionaria do mesmo modo com outras escalas e com os acordes “diatônicos” a essa escala. Nesta seção, usarei como exemplo a escala diatônica (024579B) e o Lídio 7#2b6 (034678A). 

    Na sua própria definição a “Teoria especial de harmonia é restrita a E1 do primeiro grupo de escalas, que contém todos os nomes musicais (c, d, e, f, g, a, ) e sem repetição”. O primeiro grupo de escalas de Schillinger, são as escalas de 1 a 11 classes de notas, restritas a uma oitava. Neste capítulo, ele se limita às escalas de sete notas em primeira expansão (E1). As expansões das escalas são ordenamentos da escala de modo a formar uma estrutura uniforme. A forma original da escala (E0) é a escala ordenada em graus conjuntos. E1 é a escala ordenada em terças – do mesmo modo como na teoria acorde escala. E2 é a escala construída “em quartas” e assim por diante. Na imagem abaixo, as duas escalas que usaremos aparecem em E0, E1, e E2.

    As escalas, em Schillinger, são conjuntos ordenados e os acordes são os conjuntos discretos gerados pelas expansões. Abaixo, os acordes da primeira expansão das duas escalas construídos sobre C no que Schillinger chama de forma positiva. Não discutirei a forma negativa.

    No caso da escala diatônica, isso seja só um jeito desnecessariamente complicado de dizer: acordes de qualquer cardinalidade construídos em terças sobre a escala. No caso de escalas sintéticas e exóticas, onde a noção de “terça” genérica pode variar de 2 a 5 semitons, parece-me uma forma mais natural de entender as estruturas geradas. O mesmo poderia ser feito com as outras expansões. No exemplo abaixo, os acordes gerados sobre a segunda expansão das duas escalas sobre C.

    A progressão das fundamentais dos acordes acontece sobre ciclos tonais que Schillinger nomeia: ciclo das terças, ciclos de quintas e ciclo de sétimas que ele constrói descendentemente sobre os intervalos de terça, quinta e sétima genéricos da escala. Vale notar, que Schillinger distingue entre a forma harmônica (HS) e a forma melódica (MS) da escala. HS é construído descendentemente sobre a primeira expansão de MS. Na imagem abaixo os três ciclos são nomeados pela expansão da escala harmônica e pelo tipo de ciclo tonal (Cn). As notas ligadas representam os movimentos cadenciais de cada ciclo, entendidas como o movimento de ida e volta entre acordes adjacentes no ciclo. O primeiro são as cadências de abertura (C para F no ciclo de quintas) e os últimos são as cadências de fechamento (G para C no ciclo de quintas).

    Uma progressão por qualquer um dos ciclos tonais produz uma sequência contendo os sete acordes da escala. Progressões mais interessantes podem ser geradas combinando ciclos para gerar progressões binomiais (dois ciclos) ou trinomiais (três ciclos). Progressões binomiais envolvem o movimento intercalado entre dois ciclos, por exemplo: no binômio C3+C5, começando em C, movemos para A por C3, de A para D por C5, de D para B por C3 e assim por diante. Na imagem abaixo, notei as fundamentais da progressão binomial C3 + C5.

    Nas progressões trinomiais, os três ciclos são combinados intercaladamente. No caso, de C7 + C3 + C5, partindo de C para D por C7, para B por C3, para E por C5, para F por C7 e assim sucessivamente até retornar a C. Na imagem abaixo, o mesmo trinômio é construído sobre o Lídio 7#2b6 e em seguida harmonizado com tricordes retirados de E1 desta escala. Observe que as fundamentais dos acordes são notadas com a cabeça vazada e o ordenamento e a sequência dos acordes priorizou um movimento ascendente com condução parcimoniosa de vozes.

    Uma terceira possibilidade é a criação de progressões polinomiais, onde cada ciclo é repetido certo número de vezes. Por exemplo, na escala diatônica, o polinômio 2C3 + C5, partindo de C para A e depois F por C3 e de F para B por C5. Os números atribuídos a cada ciclo é chamado por Schillinger de Coeficiente de Recorrência. 

    Os polinômios podem ficar tão complexos quanto o compositor quiser e podem ser usados em combinação com outras técnicas, como a sincronização binária da teoria do ritmo. A sincronização de 3 e 2 (3:2), por exemplo, gera o seguinte padrão: 2 1 1 2. 

    Podemos utilizá-lo fazendo interferir sobre C7 + C5 para gerar 2C7 + 1C5 + 1C7 + 2C5. Observe que, para completar a progressão, é preciso múltiplas iterações do polinômio até retornar ao mesmo C (notadas com notas ligadas).

    Os diferentes tipos de continuidade (progressões monomiais, binomiais, trinomiais, polinomiais e mais complexas) geram estilos harmônicos que o compositor pode usar em contexto diatônico. Depois de selecionada a progressão das fundamentais, resta escolher o tipo de estrutura dos acordes a serem construídos sobre as fundamentais. No caso de Schillinger, essas estruturas são as tríades da primeira expansão da escala diatônica e mais acima exemplifique construíndo uma progressão sobre as tríades da primeira expansão do Lídio 7#2b6. Outras estruturas poderiam ser usadas, mesmo no caso da escala diatônica. Os tricordes 3-2, 3-4, 3-5, 3-6, 3-7, 3-8, 3-9, 3-10 e 3-11 são, por exemplo, subconjuntos da escala diatônica e poderiam ser utilizados. Obviamente nem todos os tricordes podem ser construídos sobre os graus e seria preciso – se quisermos manter a consistência do sistema – um jeito de identificar a expansão que resultaria em cada um deles. Uma maneira mais fácil seria deslizar as vozes dos tricordes pela escala. Na imagem abaixo, deslizo sobre C3+C5 o tricorde 3-6 (024) – construído como tônica, terça e nona genéricas da escala – resultando em uma progressão que varia entre 3-6, 3-2A e 3-2B. Não me preocupei com condução parcimoniosa de vozes, para facilitar a identificação dos tricordes.

    De qualquer modo, na harmonia diatônica, mesmo expandindo as estruturas de acorde aceitáveis, ainda estamos limitados aos subconjuntos da escala diatônica ou de referência escolhida. As harmonias simétricas nos dão outras possibilidades harmônicas, politonais, cromáticas etc.

    Harmonia diatônica-simétrica

    A harmonia diatônica-simétrica mantém o movimento das fundamentais pelos ciclos tonais internos à escala de referência – seja diatônica, seja sintética – mas usa um mecanismo de seleção dos acordes diferentes. Nela, as estruturas dos acordes são pré-selecionadas e usadas cromaticamente. Isso quer dizer que, se selecionarmos, por exemplo, a tríade menor e a escala diatônica, todos os acordes serão tríades menores, independentemente da fundamental. No exemplo abaixo, a tríade menor é construída sobre a progressão C3 + C5.

    Mesmo com uma única estrutura e uma progressão sobre ciclos tonais diatônicos, o resultado é uma saturação cromática: somente a classe de notas 1 (C#) não está presente. Entretanto, é possível construir progressões com mais de uma estrutura. Com múltiplas estruturas, começamos a gerar progressões ainda maiores. Se escolhermos, por exemplo, 3-7A e 3-7B sobre C3 é preciso passar duas vezes pelo ciclo antes de a progressão se completar, i.e. retornar à mesma estrutura no mesmo momento do ciclo. Abaixo realizei o ciclo intercalando 3-7A e 3-7B, no primeiro sistema em um aversão literal, na segunda, em um voicing diferente, buscando melhor condução de vozes.

    Observe que cada estrutura, aparece uma veze sobre a mesma fundamental – de modo que cada fundamental aparece sob duas estruturas diferentes em momentos diferentes da progressão. Mesmo com tríades mais tonais, é possível gerar progressões bastante cromáticas. No exemplo abaixo, 3-11A e 3-11B, respectivamente o tricorde menor e o tricorde maior, são construídos sobre o ciclo C3, numa primeira realização literal e depois com melhor condução de vozes.

    Na harmonia diatônica-simétrica, também é possível construir progressões trinomiais, que não exemplificarei, e polinomiais usando coeficientes de recorrência diversos para cada estrutura, além de combinações de diferentes ciclos tonais com coeficientes diferentes. As resultantes de combinar ambos os processos (progressão polinomial sob estrutura polinomial) tornam-se rapidamente muito grandes e complexas. Utilizemos a estrutura polinomial 2x + 1y para a progressão das fundamentais e para os tricordes. Para as fundamentais x=C3 e y=C7. Para as estruturas x= 3-9 (027) e y= 3-5B (056), construídos, respectivame nte como Q3 (tricorde quartal) e TQ (tricorde de trítono e sétima maior).

    No exemplo acima, como utilizamos o mesmo binômio, apesar de longa, o ciclo das fundamentais só precisou repetir-se uma vez antes de se completar. Mas utilizando coeficientes de recorrência diferentes para a progressão das fundamentais e para a recorrências das estruturas, múltiplas voltas serão necessárias.

    Um detalhe interessante da harmonia diatônica-simétrica é a produção, nas vozes dos tricordes, de um tipo de politonalismo ou polimodalismo ou o que se queira chamar a simultaneidade de mais de uma transposição de uma escala ou de escalas diferentes nas vozes. No caso de uma progressão simples – i.e. uma progressão sobre um ciclo tonal com uma estrutura – produzimos escalas paralelas distando a estrutura do acorde. Por exemplo: 027 sobre qualquer ciclo, se todas os acordes estiverem na mesma posição, por exemplo, como Csus2, Dsus2, Esus2 e etc. Temos a escala maior de C, D e G soando simultaneamente. 

    A harmonia diatônica-simétrica, pela referência escalar, mesmo polimodal, nos mantém ainda, em certo sentido, dentro de um cromatismo diatônico à escala de referência, com suas implicações de polarização e de hierarquias tonais. Quando partimos para a harmonia simétrica pura, isso é substituído – finalmente – por um sistema multi-tônicas.

    Harmonia simétrica

    Na harmonia simétrica a seleção das fundamentais não está centrada em nenhuma escala, mas em ciclos intervalares propriamente ditos, entendidos aqui como divisões simétricas da oitava. Tanto as estruturas quanto a progressão das fundamentais é pré-selecionada independentemente da escala. É importante que, para ser harmonia simétrica, as estruturas selecionadas não podem ser subconjuntos da classe resultante do ciclo empregado. Por exemplo, se escolhermos 3-8A (026) como a estrutura e o ciclo de dois semitons (que resulta na escala de tons inteiros) como progressão das fundamentais, não geramos uma harmonia simétrica propriamente dita, já que as estruturas são subconjuntos da escala de tons inteiros. Neste caso, teríamos uma harmonia diatônica – ainda que não sobre a escala diatônica, mas diatônica à escala pré-selecionada.

    O primeiro caso de harmonia simétrica que Schillinger cita, entretanto, não é construído sobre um ciclo que divide a oitava em partes, mas na própria oitava – ou uníssono – o ciclo de 0 semitons. Neste caso, um número de estruturas pré-selecionadas é tocado sobre a mesma fundamental. Este tipo de progressão, diz Schillinger, “pode ser uma forma independente de continuidade harmônica ou uma parte de outras formas simétricas” (1946, p. 391). Como continuidade harmônica independente, podemos pensar este tipo de harmonia como uma progressão sobre um baixo ou outro tipo de pedal.

    O ciclo zero, como disse, não é exatamente um ciclo, mas a oitava: ele divide um espaço de notas idealmente infinito em oitavas e – em função da equivalência de oitava – divide a oitava em 1 tônica. As outras divisões da oitava são geradas pelos ciclos intervalares. Há cinco sistemas multi-tônicas:

    SistemaTônicas (em inteiros)Ciclos correspondentes
    Duas tônicas0-6-0ic6
    Três tônicas0-4-8-0ic4 e ic8
    Quatro tônicas0-3-6-9-0ic3 e ic9
    Seis tônicas0-2-4-6-8-Aic2 e ic10
    Doze tônicas0-1-2-3-4-5-6-7-8-9-A-Bic1, ic11, ic5 e ic7

    Rochinski, embasado, creio, na leitura berkleeana do sistema Schillinger, adiciona dois pontos importantes: primeiramente, as tônicas podem representar centros tonais (de um modo, ou escala) ou fundamentais de acordes. Em segundo lugar, somente os sistemas de 3 e 4 tônicas são fundamentais, os outros são derivados. O sistema de 2 tônicas (0-6-0) é o sistema de 4 (0-3-6-9-0) tônicas reduzido; o sistema de 6 tônicas (0-2-4-8-A-0) é uma combinação de dois sistemas de 3 tônicas (0-4-8-0) separados por 2 semitons. Os sistemas de 12 tônicas são raramente usados enquanto sistemas multi-tônica e podem ser usados como progressões axiais parciais.

    Duas observações adicionais são importantes. Primeiramente, é possível usar múltiplas estruturas de acorde, construir progressões com coeficientes de recorrência para cada estrutura e mesmo para os ciclos. Em segundo lugar, as progressões geradas devem ser encaradas como esqueletos ou fundo, não necessariamente como progressões literais. Isso quer dizer: o compositor deve se sentir convidado a adicionar notas e acordes de passagem, desenvolver as progressões com extensões, embelezamentos, substituições e o que mais achar apropriado. Na discussão a seguir, vou me limitar ao esqueleto, geralmente com só um tipo de estrutura.

    Sistema de duas tônicas

    O sistema de duas tônicas é construído sobre o ciclo de seis semitons. Considerando a prática de condução de vozes de Schillinger, o sistema de duas tônicas forma o que ele chama de sistema contínuo. Isso é, se rotacionarmos, a cada tônica, o acorde usado, o sistema leva mais de uma interação para se completar – ou seja, retornar ao mesmo acorde, na mesma rotação, na mesma tônica. No exemplo abaixo, utilizo, como Schillinger, o acorde maior como estrutura, mas mudando a rotação tônica gerando um padrão ascendente em cada voz.

    Com a tônica no baixo e o resto do acorde nas vozes superiores é possível ver que a mesma escala é gerada em cada voz: 6-34 (468A01).

    Se utilizarmos tricordes mais interessantes, como Q3 (027), problemas de condução de vozes começam a aparecer, mas obtemos harmonias mais exóticas.

    Novamente, a mesma escala é produzida em cada voz. Neste caso 6-7 (012678). Sugiro testar conduzir as vozes usando 8-25 (0124678A) para conduzir as vozes que saltam 3 semitons, especificamente usando 4 para conduzir de 2 a 6 e A para conduzir de 8 a 0.

    A progressão das tônicas não chega a constituir uma escala da qual podemos extrair tricordes, já que é só uma díade (0-6). Mas é importante observar que tricordes derivados dos ciclos de 3 e 4 semitons, respectivamente 3-10 (036) e 3-12 (048) podem obscurecer o caráter simétrico da harmonia, pois resultam, respectivamente no tetracorde diminuto ou 4-28 (0369) – as fundamentais do sistema de 4 tônicas e o ciclo de três semitons – e na escala de tons inteiros ou 6-35 (02468A) – o sistema de seis tônicas e o ciclo de dois semitons.

    Sistema de três tônicas

    O sistema de três tônicas é construído sobre o ciclo de quatro semitons (048) ou de oito semitons (084). Os subconjuntos a serem evitados são a terça maior (04) e o tricorde aumentado (048), que é idêntico ao ciclo das fundamentais. Em ambos os casos, o resultado é a escala resultante da progressão das fundamentais, o que configuraria um sistema diatônico. Todos os subconjuntos de 6-35 (02468A) – 3-6 (024), 3-8A (026) e 3-8B (046) e 3-12 (048) – também devem ser evitados, pois resultam nesta escala, da qual as fundamentais do sistema de três tônicas (048) são subconjunto. O resultado seria uma harmonia diatônica, na escala de tons inteiros seguindo um ciclo tonal CT3 (de terças).

    Giant steps e seus derivados diretos são baseados neste sistema. No caso de Giant Steps, o acorde de sétima maior (047B) é construído sobre cada uma das tônicas do sistema começando em B (B37) e depois preenchida com ii-V7-I ou V7-I para tonicizar cada um dos acordes resultantes.

    Como o sistema tem 3 tônicas, a rotação de conjuntos de cardinalidade 3 – que possuem 3 rotações – a cada tônica gera um sistema fechado, como no exemplo abaixo, com 3-9 (027).

    Utilizando duas estruturas de acorde com recorrência 1, ou intercalando entre posição aberta e fechada, três tônicas geram um sistema contínuo de dois ciclos. No exemplo abaixo 3-7A e 3-7B.

    Outra possibilidade, utilizando duas ou mais estruturas é tratar cada tônica como c0 até completar os tricordes. No exemplo abaixo, primeiro 3-7A e 3-7B são construídos sobre 0 (c0) e depois sobre 4 e por fim 8. O resultado é um híbrido de um sistema sobre c0 e sobre c4 contendo 6 acordes sobre três tônicas.

    Sistema de quatro tônicas

    O sistema de quatro tônicas é construído sobre o ciclo intervalar de quatro semitons (0369) ou de nove semitons (0963). O tetracorde diminuto (4-28), que contém as mesmas notas do ciclo, e 3-10, único tricorde subconjunto de 4-28, devem ser evitados.

    Parte da progressão de Litha, de Chick Corea, é construída sobre uma combinação de dois sistemas de quatro tônicas, um começando em Dmaj7 e um começando em C#m7. A progressão resulta de intercalar os dois sistemas descendentemente, como no exemplo abaixo – onde as fundamentais de cada sistema estão diferenciadas por registro.

    O resultado é interessantíssimo de um ponto de vista modal. Dmaj7 pode ser lido como sugerindo Jônio ou Lídio. O lídio é confirmado por C#m7, mas quando C#m7 – que deve ser lido como frígio para que Dmaj7 seja lídio – move-se para Bmaj7, sugere C# dórico e B jônio. Quando Bmaj7 move-se para Bbm7, sugere que Bmaj7 é lídio e Bbm7 é frígio, para depois ser dórico em relação a Abmaj7 e assim por diante. O resultando é que ambos os acordes são lidos de um modo como ponto de partida e outro como ponto de chegada. A progressão também pode ser pensada como uma progressão diatônica-simétrica sobre a escala octatônica.

    O sistema de quatro tônicas resulta em um sistema contínuo com três ciclos quando rotacionamos as vozes de um mesmo tricorde a cada tônica. No exemplo abaixo, 3-5B (056) é construído trocando de rotação a cada fundamental. 

    Observe que cada voz forma a escala octatônica ou 8-28 (0235689B), que poderia ser usada para facilitar a condução de vozes. Todos os subconjuntos da escala octatônica, excetuando 3-10 – ou seja, 3-2, 3-3, 3-5, 3-7, 3-8 e 3-11 – geram a escala octatônica quando construídos sobre o sistema de quatro tônicas.

    Sistema de seis tônicas

    O sistema de seis tônicas é construído sobre o ciclo de dois semitons ou de dez semitons que gera a escala de tons inteiros ou 6-35 (02468A). Subconjuntos desta escala (3-6, 3-8 e 3-12) devem ser evitados, uma vez que resultam em harmonia diatônica sobre 6-35. Os subconjuntos recomendados são 3-1, 3-2, 3-3, 3-4, 3-5, 3-7, 3-9, 3-10 e 3-11.

    Muhal Richard Abrams utiliza o sistema de seis tônicas sobre acordes menores com sétima na progressão de Roots. Na transcrição e análise de Marc Hannaford, a peça começa com cinco acordes menores construídos sobre o ciclo (02468A) – e observe que ele não segue o ciclo numa progressão linear, mas utiliza as tônicas geradas sobre o sistema. Eventualmente, Abrams muda para a outra transposição do sistema de seis tônicas (13579B) descendo em graus conjuntos e cercando B – a única tônica não utilizada no primeiro sistema, o que Hannaford vê como um completar do ciclo. As progressões seguintes seguem o sistema de 12 tônicas.

    É interessante notar a prevalência do acorde menor com sétima ou 4-26, que contém dois intervalos de ci3 (três semitons) e ci5 (cinco semitons), sobre a escala de tons inteiros, que não contém esses intervalos. 

    Sistema de doze tônicas

    O sistema de seis tônicas é construído sobre os ciclos de um, onze, cinco ou sete semitons. Todos os conjuntos de qualquer cardinalidade, no sistema de 12 notas, são subconjuntos destes ciclos, de modo que é impossível recomendar, a partir deles, uma seleção de tricordes. Entretanto, se considerarmos os ciclos geradores – ou da famílias de ci1 (1 e 11 semitons) ou da família de ci5 (5 ou 7 semitons) – podemos evitar: 1) os tricordes discretos gerados pelo ciclo – ou seja: 3-1 (012) para ci1 e 3-9 (027) para ci5. 2) Tricordes com prevalência de ci1 e ci5 – como 3-2 (013) para ci1 e 3-7 (025) para ci5. 

    Ainda que, para a geração de progressões completas, esses sistemas sejam de pouca utilidade, eles podem gerar resultados interessantes se forem usadas parcialmente, como no exemplo de Abrams acima. Importante nesses casos priorizar a saturação cromática – ou seja preencher o intervalo da progressão com as fundamentais que caracterizem o sistema – evitar obviedades (no caso de ci1) e implicações tonais (no caso de ci5) e evitar que a progressão das fundamentais resulte em outro ciclo.

    Outros Sistemas

    Se expandirmos nossa seleção básica de notas – aquela que define a escala cromática de doze tons iguais – por outro sistema de seleção de notas – por exemplo, o sistema de 24 quartos de tom – podemos gerar sistemas multi-tônicas diferentes. Em quartos de tons, por exemplo, o ciclo de 3 quartos de tom (1,5 semitons) gera um sistema de oito tônicas. 

    Se organizarmos este sistema de oito tônicas alterando a rotação a cada tônica, geramos um sistema contínuo com recorrência a cada três ciclos, como no exemplo abaixo. Observe que, pela extensão da progressão, saltei a cada compasso para favorecer a legibilidade.

    Digressão: outras estruturas relacionadas

    Há outras formas de pensar sistemas multi-tônicas – que acabam resultando em estruturas semelhantes, mas com lógicas de construção e uso diversas. Imagino que hajam tantas quanto compositores, improvisadores e teóricos interessados nelas, mas focarei em três: nos padrões melódicos de Slonimsky, nos modos de transposição limitada de Messiaen e nas escalas simétricas. Essas duas últimas são semelhantes, mas com usos diferentes.

    No Thesaurus of Scales and Melodic Patterns, Slonimsky descreve uma enorme quantidade de escalas e padrões melódicos baseados em divisões simétricas de uma quantidade de oitavas – o mesmo que os ciclos intervalares de 1 a 12 semitons. Na tabela abaixo, apresento os nomes propostos por Slonimsky, a quantidade de divisões do número de oitavas gerado pelo ciclo derivado e o sistema multi-tônicas equivalente. A divisão é representada por n/m onde n é o número de oitavas e m é o número de partes. A divisão ⅔, por exemplo, é a divisão de duas oitavas em três partes.

    IntervaloNomeDivisãoSistema
    ci1Semitom1/12doze tônicas
    ci2Tom1/6seis tônicas
    ci3Sesquitom1/4quatro tônicas
    ci4Ditom1/3três tônicas
    ci5Diatessarão5/12doze tônicas
    ci6Tritom/Trítono1/2duas tônicas
    ci7Diapente7/12doze tônicas
    ci8Quadritom2/3três tônicas
    ci9Sesquiquadritom3/4quatro tônicas
    ci10Quinquetom5/6seis tônicas
    ci11Sesquiquinquetom11/12doze tônicas

    Essa estrutura básica – idêntica aos ciclos apresentados no texto O que é um ciclo intevalar? – define os tons principais que são ornamentados com notas adicionais. Essa ornamentação é sempre idêntica para cada tom principal. Por exemplo, se estamos construíndo um padrão sobre os tons principais do ciclo de seis semitons e adicionarmos uma nota um semitom acima de C, adicionaremos uma nota um semitom acima de F#. Slonimsky lita três processos de ornamentação básicos que podem ser combinados: interpolação (adicionar uma nota entre os tons principais adjacentes), ultrapolação (adicionar uma acima do próximo tom principal), infrapolação (adicionar uma nota abaixo da nota principal atual). No exemplo abaixo, retirado do livro, os três processos são ilustrados sobre o ciclo de seis semitons (sistema de duas tônicas).

    Esses processos podem ser realizados com quantas notas se queira (desde que possível) – por exemplo, interpolação de 1, 2, 3, n notas – ou combinados – por exemplo inter-ultrapolação de uma nota: adicionar uma nota entre e uma acima. Abaixo um exemplo de inter-infra-ultrapolação:

    É fácil perceber que, na prática, estamos construindo, sobre cada tom fundamental, a mesma classe de conjunto na mesma rotação. O que nos leva de volta à lógica dos sistemas multi-tônicas, mas tocada melodicamente. No caso acima, podemos pensar o padrão como 4-14 (9B04) construído sobre o sistema de duas tônicas considerando a terceira nota da forma normal (0 em T4 e 6 em T10) como fundamental. Parece-me que a comparação nos convida a criar padrões com mais de uma classe de conjunto e coeficientes de recorrência. No exemplo abaixo, infra-interpolo a classes 3-7 e inter-ultrapolo a classe 3-9 com coeficiente de recorrência 2 para 3-7 e 1 para 3-9. 

    Um adepto dos padrões melódicos de Slonimsky – não coincidentemente – é justamente Coltrane. Em sua tese, Jeff Bair estuda o uso destes padrões por Coltrane, em especial em sua última fase. Não vou transcrever as análises dele aqui, mas recomendo a leitura. Também vale escutar Interstellar Spaces de Coltrane. Vale notar que, ainda que use os padrões diretamente, parece-me que Coltrane prefere usar os ciclos como um esqueleto e preencher notas de passagem entre um e outro. Mesmo quando utiliza os padrões literalmente, Coltrane ornamenta-os com notas de passagem e aproximações típicas da linguagem do bebop, conectando a linguagem simétrica com a tradição na qual se insere.

    Outra forma de pensar sistemas multi-tônicas são os modos de transposições limitadas descritos por Olivier Messiaen. Estes conjuntos de notas são estruturas simétricas que podem ser transpostas um número limitado de vezes antes de repetirem-se em conteúdo e estrutura. Por exemplo, dizemos que 3-12 (048), possui transposições limitadas pois há somente 4 transposições possíveis dele, T0, T1, T2 e T3. T4 (480) possui exatamente a mesma estrutura e classes de notas de T0 (048) ainda que em uma rotação diferente.

    3-12 T0 (048)3-12 T4 (480)3-12 T8 (804)
    3-12 T1 (159)3-12 T5 (591)3-12 T9 (915)
    3-12 T2 (26A)3-12 T6 (6A2)3-12 T10 (A26)
    3-12 T3 (37B)3-12 T7 (7B3)3-12 T11 (B37)

    Os modos de transposição limitada são conjuntos de notas com a mesma propriedade. Messiaen lista sete modos e afirma ser impossível criar outros, sendo que os outros seriam subconjuntos destes. Apesar de serem sete, Messiaen prioriza na sua música os 3 primeiros, que possuem menos transposições e portanto se adequam ao seu interesse no “charme das impossibilidades”. Estes modos, diz Messiaen, “estão ao mesmo tempo na atmosfera de diversas tonalidades, sem politonalidade, deixando o compositor livre para dar predominância a uma das tonalidades ou deixar a impressão de tonalidade indecidida” (1942, p. 58).

    O primeiro modo de transposição limitada é a escala de tons inteiros ou 6-35, idêntica ao ciclo de ic2, à divisão da oitava em seis partes e ao sistema de seis tônicas. Este modo possui 2 transposições e somente um modo.

    O segundo modo de transposição limitada é a escala octatônica ou 8-28. Ele pode ser pensado como dois tetracordes de sétima diminuta ou 4-28 (0369). Este modo possui 3 transposições e dois modos (o que inicia com um semitom e o que inicia com um tom). No exemplo abaixo, construí os dois modos partindo de C.

    O terceiro modo de transposição limitada é 9-12. Ele pode ser pensado como três tricordes aumentados ou 3-12. Este modo possui quatro transposições e três modos. Abaixo os três modos construídos sobre C.

    O primeiro modo é baseado no ciclo ci2, o segundo de ci3 e o quarto de ci4. Os modos 4, 5, 6 e 7 são baseados no ciclo ci6 e são menos interessantes: possuem mais transposições e são, portanto, menos limitados. O quarto modo é 8-9 (0125678B), possui seis transposições e quatro modos. O quinto modo é 6-7 (01567B), possui seis transposições e três modos. O sexto modo é 8-25 (024568AB), possui seis transposições e quatro modos. O sétimo modo 10-6 (012356789B), possui três transposições e cinco modos.

    Messiaen descreve os modos como produzidos por uma sucessão de grupos construídos sobre divisões simétricas da oitava. Por exemplo, o modo dois “é dividido em quatro grupos simétricos de três notas […] divididos em dois intervalos semitom e tom.”.

    Se começarmos no segundo modo (em Db no exemplo acima) o padrão se inverte (tom, semitom), mas a estrutura simétrica se mantém. Outros tricordes construídos sobre um sistema de quatro tônicas também geram o segundo modo (e, com outras divisões, os outros modos), conectando-os aos sistemas multi-tônicas e aos padrões melódicos de Slonimsky – que, nesta visão, não passam de estruturas melódicas específicas dos modos de transposição limitada. Na versão de Messiaen, o modo é construído sobre o sistema de 4 tônicas com o tricorde 3-2A (013) ou 3-2B (023), mas podemos construí-lo, por exemplo, sobre 3-11A ou 3-11B (no exemplo abaixo).

    Ou como um padrão melódico sobre a divisão de uma oitava em quatro partes. No exemplo abaixo, com inter-ultrapolação de uma nota.

    O terceiro modo é produzido por sistemas e divisões baseados no ciclo de 4 semitons. Os modos 4, 5, 6 e 7 são produzidos sobre o ciclo de 6 semitons. A utilização de alguns tricordes geram versões truncadas (subconjuntos) dos modos e de alguns outros geram o total cromático.

    Messiaen utiliza os modos tanto melodicamente como harmonicamente – mais especificamente como macroharmonia, ou seja, como contexto do qual extrair acordes. O exemplo aparentemente esdrúxulo que utilizei para harmonia diatônica – Lídio 7#2b6 (034678A) – pode ser pensado como um acorde de sete notas derivado do terceiro modo de transposição limitada, que poderia, dentro deste modo, ser transposto sobre o ciclo de 4 semitons mantendo a macroharmonia limitada ao modo. No exemplo abaixo, a escala na primeira expansão (E1) é construída sobre as três tônicas do ciclo de 4 semitons resultando na macroharmonia do terceiro modo, notado no sistema de baixo.

    A mesma estrutura poderia ser organizada como um padrão melódico. No exemplo abaixo como infra-inter-ultrapolação. Note que a reservo a nota que começa a próximo ciclo (e que faz parte do ciclo anterior), ou seja, partindo de C, E, para a última nota do padrão – e primeira do próximo.

    Um último modo de lidar com sistemas multi-tônicas são as escalas simétricas, que podem ser usadas melodicamente ou para construir harmonias diatônicas (a elas) ou diatônicas simétricas – utilizando acordes exteriores a elas. Em Symmetrical scales for jazz improvisation, Masaya Yamaguchi lista todas as escalas simétricas de duas a 10 notas – muitas das quais são simplificações ou subconjuntos dos modos de transposição limitada. Estas escalas estão descritas na tabela abaixo, pela classe de conjunto, conteúdo e equivalente.

    CCConteúdoEquivalente
    2-606Complemento do 7º modo de transposição limitada/Ciclo de ci6
    3-12048Complemento do 3º modo de transposição limitada/Ciclo de ci4
    4-90167Complemento do 4º modo de transposição limitada
    4-250268Complemento do 6º modo de transposição limitada
    4-280369Tetracorde diminuto/Ciclo de ci3
    6-70126785º Modo de Transposição Limitada
    6-20014589Escala aumentada
    6-30A013679Dois tricordes menores sobre C6 
    6-30B023689Dois tricordes maiores sobre C6
    6-3502468A1º modo de transposição limita/Ciclo de ci2
    8-9012367894º modo de transposição limitada
    8-250124678A6º modo de transposição limitada
    8-280134679A2º modo de transposição limitada
    9-1201245689A3º modo de transposição limitada
    10-601234678A7º modo de transposição limitada

    Todas essas escalas foram discutidas ou neste texto ou no texto sobre ciclos intervalares e não repetirei a discussão aqui. Vale dizer que todas elas podem ser construídas como classes resultantes de sistemas multi-tônicas, padrões melódicos ou como combinação de ciclos intervalares com suas transposições.

    O que fazer com isso

    Antes de encerrar o texto, quero propor alguns usos para explorar sistemas multi-tônicas. A ideia desses textos é produzir materiais para compor ou improvisar, mas só produzi-las não é suficiente; é preciso selecioná-los e organizá-los no tempo, pensar relações entre eles, criar materiais derivados, mapear possibilidades e depois desenvolver isso até virar música propriamente dita. Este texto olhou para parte deste processo: a construção de um contexto harmônico pela seleção de uma progressão de fundamentais e pela seleção de conjuntos a serem construídos sobre a seleção. Faltará, evidentemente, o aspecto rítmico, mas isso caberá ao leitor e à experimentação. A forma geral da música, das seções, das frases também está além do texto e será discutida em outro momento. Proponho que se tente exercitar as ideias com formas frasais bastante simples como pergunta e resposta (período) ou baixo contínuo, buscando atentar a forma como definir, num contexto não tonal, frases, interrupções, cadências e etc.

    1 Progressão e acordes de passagem

    Crie uma progressão selecionando uma progressão simétrica de tônicas e uma qualidade de acordes tonais, os mais tradicionais possíveis. Algo como Cmaj7, Cm7 ou C6 – talvez C7. Prefira os sistemas com poucas tônicas, isso é: os construídos sobre c3 (0369), c4 (048) e c6 (06). Isso resultaria em “esqueletos” que poderiam ser:

    1. Cmaj7 Ebmaj7 Gbmaj7 Amaj7
    2. Cm6 Em6 Abm6
    3. C6 Gb6

    Esse esqueleto pode ser usado como uma progressão axial, uma progressão de estrutura constante ou ser preenchida com acordes de passagem ou cadenciais. A progressão axial seria seguir as progressões das tônicas literalmente, usando rotações dos acordes para uma condução de vozes parcimoniosa. A estrutura constante é uma progressão em que a mesma rotação, ou seja, o mesmo voicing, é mantido em uma progressão paralela.

    Dentro de progressões axiais e estruturas constantes, do ponto de vista formal – aqui entendido como da distribuição dessa progressão no tempo – há três opções:

    1. Alternação constante entre as tônicas gera estase harmônica semelhante à uma harmonia modal. Em especial quando a duração das tônicas é idêntica, a progressão logo torna-se um fundo quase meditativo. Entretanto, se utilizarmos diferentes inversões dos acordes, é possível criar algum
    2. Outra opção com resultado meio modal é utilizar uma fundamental como tônica e as outras como ornamentações. No sistema de duas tônicas isso é simples, mas nos sistemas de três e quatro tônicas é possível ornamentar uma delas com uma estrutura e eventualmente modular para a próxima e repetir o processo.
    3. Distribuir assimetricamente as tônicas gera uma progressão mais contínua e funções diferentes e em cada momento para cada tônica. Isso é, uma primeira frase poderia ser Cmaj7 Abmaj7 Emaj7, onde os dois primeiros acordes duram um compasso e o último dura dois compassos; a segunda frase poderia ser Abmaj7 Emaj7 e Cmaj7 por dois compassos. A diferença de duração torna o último acorde mais próximo de uma estabilidade temporária, cria um senso de progreção e evita a ciclicidade pseudo-modal.

    Preencher com cadências e ornamentações pode ser feito acima de qualquer uma das estruturas acima. A ideia aqui é reforçar os múltiplos centros tonais, usando fórmulas cadenciais (como ii-V-I ou IV-V-I ou mesmo iv6-I ou vi6-I) e condução de vozes. No exemplo abaixo o sistema de quatro tônicas é distribuído assimetricamente e ornamentado. Note que F# e C ocupam cada um seis tempos, enquanto A e E ocupam só 4. Isso pode fazer com que A e E soem só como ornamentações sobre um sistema de dois semitons.

    O uso de sistemas multi-tônicas com cadências e ornamentações (prolongamentos etc) é a lógica por dentro de Giant Steps e por canções como Dom de Iludir de Caetano Veloso, que utiliza a mesma progressão de fundamentais, ainda que utilize cadências diferentes e uma organização menos simétrica da distribuição das fundamentais no tempo. 

    Este tipo de progressão acaba gerando uma linguagem mais tonal, ainda que meio errática, o que facilita comunicar a lógica de ciclos com a tradição da canção e com os materiais diatônicos que estamos acostumados a usar. Há um excelente artigo de Sérgio Freitas (2014) sobre Ciclos de terças em certas canções da música popular no Brasil descreve bem o sistema multi-tônicas e as cadências utilizadas nesta e em outras canções populares. 

    Vale experimentar um tratamento mais modal, seja substituindo os acordes resultantes pelos modos deles e escolher outro modo da mesma escala, seja criando progressões de modos equidistantes – ou seja, construindo um mesmo modo sobre cada uma das tônicas.

    2 Construir estruturas maiores a partir de tricordes discretos

    Combine os tricordes de uma progressão para formar estruturas maiores – hexacordes e complementos – e relacionar múltiplas progressões de um tricorde. Comece escolhendo um tricorde interessante, usarei 3-4A nesta seção. 

    Depois avalie as classes de intervalos do tricorde para escolher um ciclo a partir de um intervalo não contido. O tricorde 3-4 possui ci1, ci4 e ci5, representado no vetor classe intervalar como <1,0,0,1,1,0>. Então podemos escolher ci2, ci3 e ci6 como ciclos. Opto por esses ciclos porque classes de conjunto, quando transpostas por intervalos que não estão contidos na sua estrutura, não possuem notas em comum. T0 e T2, T0 e T3 e T0 e T6, dois a dois, não possuem notas em comum. Isso garante que o resultado entre dois conjuntos será um conjunto de cardinalidade 6.

    Agora precisamos gerar as progressões. O sistema de duas tônicas, baseado em c6, gera 3-4A T0 (015) e T6 (67B). A soma dos dois tricordes – ou seja, como se fossem considerados juntos – gera 6-7 T0 (01567B), o quinto modo de transposição limitada. Podemos ou considerar isso a macro harmonia da seção e utilizá-la como escala para condução de vozes ou melodia; ou podemos usá-lo como base para  gerar outra estrutura maior. Todo hexacorde possui um hexacorde complementar, ou seja, que contém as classes de notas que faltam a ele em relação à escala cromática. No caso de 6-7 T0, o complemento é 6-7 T3, que poderia ser dividido em 3-4 T3 (348) e 3-4 T9 (9A2).

    Duas tônicas3-4 T03-4 T66-7 T0
    Complemento6-7 T33-4 T33-4 T9

    Poderíamos usar 6-7 T0 em um grupo instrumental, por exemplo nos acordes do violão, e o complementar 6-7 T3 na voz. Talvez os acordes circulem entre 3-4 T0 e T6, enquanto a voz usa 6-7 como escala mais livremente. Mas podemos também atentar ao fato de que esta matriz é um ordenamento específico do sistema de quatro tônicas: T0, T3, T6, T9. De maneira similar, os hexacordes parem progredir em c3: T0, T3… T6, T9 estão logo ali.

    O sistema de quatro tônicas, baseado em c3, gera os tricordes: 3-4 T0, T3, T6 e T9. Se agruparmos os tricordes sequencialmente, isso é T0 (015) e T3 (348), T6 (67B) e T9 (9A2), geramos respectivamente 6-14A T0 (013458) e T6 (679AB2), que são complementares. Poderíamos gerar também entre T3 e T6 e T9 e T0, que resultariam na mesma classe T3 e T9, seguindo o ciclo de terças, mas a implicação da opção mais simples me interessa mais.

    Quatro tônicas3-4A T03-4A T33-4A T63-4A T9
    Soma6-14A T06-14A T6
    Complemento6-14A T66-14A T0

    Poderíamos, novamente, dividir os dois hexacordes complementares, com seus tricordes, entre grupos instrumentais e etc. Ou podemos usá-los como progressão de 6-14A T0 para T6. Ou combinar ambos e ter progressões de divisões e ordenamentos específicos de toda a escala cromática. No exemplo abaixo, verticalmente temos os tricordes em c3 e horizontalmente em c6 (com seu complemento).

    3-4A T03-4A T63-4A T33-4A T9
    3-4A T33-4A T93-4A T63-4A T0
    3-4A T63-4A T03-4A T33-4A T9
    3-4A T93-4A T33-4A T03-4A T6

    O ciclo de seis tônicas é construído sobre c2. Ele gera os tricordes 3-4A T0, T2, T4, T6, T8, T10. Já podemos observar que ele possui T6 em comum com os sistemas de duas e quatro tônicas. Agrupando os tricordes dois a dois e buscando os complementos, encontramos pela primeira vez um complemento que não é uma transposição, mas uma inversão do hexacorde. Neste caso, também só podemos inverter os tricordes do complemento: 6-9B não possui 3-4A, só 3-4B.

    3-4A T03-4A T23-4A T43-4A T63-4A T83-4A T10
    Soma6-9A T06-9A T46-9A T8
    Complemento6-9B T46-9B T86-9B T0
    Divisão do complemento3-4B T43-4B T63-4B T83-4B T103-4B T03-4B T2

    Interessante notar que os hexacordes resultantes se movem por c4 e formam um sistema de três tônicas – o que sempre acontece quando agrupamos os tricordes do sistema de seis tônicas deste modo, suprimimos parte dele e chegamos numa versão simplificada. Poderíamos simplificar mais, agrupando 3 tricordes por vez, o que resultaria em c6. 

    3-4A T03-4A T23-4A T43-4A T63-4A T83-4A T10
    Soma8-11A T08-11A T6
    Complemento4-11B T6 (68AB)4-11B T0 (0245) 

    Como 3-4A T0 e T4 possuem uma nota em comum, em função de 3-4 possuir 1 intervalo de 4 semitons, a classe resultante da soma é um conjunto de cardinalidade 8 em vez de 9. Para gerar cardinalidade 9 precisaríamos unir só três tricordes do sistema de 4 tônicas, que gera a escala cromática. Essa combinação gera 9-4B, o complemento de 3-4A.

    TricordesSomaComplemento
    3-4A T03-4A T33-4A T69-4B T113-4A T9
    3-4A T33-4A T63-4A T99-4B T23-4A T0
    3-4A T63-4A T93-4A T09-4B T53-4A T3
    3-4A T93-4A T03-4A T39-4B T83-4A T6

    Neste caso, poderíamos ter em um grupo de instrumentos, talvez o baixo, a guitarra ou a mão esquerda do piano, tocando 3-4A T9 e no outro grupo, talvez a voz ou a mão direita do piano, os tricordes do complemento 9-4B T11. Essa estrutura, como sugere a progressão dos complementos e das somas, seguiria c3, que poderia ser simplificada para c6, ou poderíamos misturar ciclos e criar sobre c2 3-4A e seus complementos 9-4B.

    Se reunirmos as fundamentais das progressões (c2, c3 e c8) temos 8-25 T2 (0234689A), o sexto modo de transposição limitada, sobre o qual poderíamos construir com 3-4A progressões diatônica-simétricas. Se construirmos os tricordes em estrutura constante (ou seja, sem rotação), as vozes formariam 8-25 T2, T3 e T7 paralelas, que também poderiam ser pensadas como transposições possíveis de todo o sistema, assim como as transposições de 8-25 (derivada de ci6).

    Podemos fazer os mesmo processos para 3-4B e gerar estruturas semelhantes, mas invertidas. Há alguns pontos em que 3-4B aparece nas estruturas que geramos com 3-4A: 6-7A contém tanto 3-4A quanto 3-4B (e o mesmo vale para 3-4B); 6-14A também; 6-9A se complementa com 6-9B, sendo que o primeiro só contém 3-4A e o segundo 3-4B. Essas conexões poderiam ser pensadas como pivôs entre sistemas de 3-4A e sistemas de 3-4B para gerar “modulações” entre os dois sistemas.

    Geramos uma rede de materiais que podem ser usados ao gosto do compositor ou improvisador para estruturar progressões como as discutidas na seção anterior. A partir do tricorde e dos ciclos, geramos escalas de fundamentais, complementos, hexacordes e complementaridade hexacordal, progressões de hexacordes, octacordes, nonacordes e da escala cromática como um todo.

    Em termos de ciclo, partimos de c2, c3 e c6, mas encontramos, a partir de c2, c4 como ciclo possível para os hexacordes. Como hexacordes, encontramos 6-7 (derivado de c6 e que pode ser ampliado com c3), 6-14A (derivado de c3, gerando c6), 6-9A (derivado de C2) e seu complemento 6-9B. Dois octacordes: 8-11A, gerado a partir de c2 agrupado em 3 tricordes e 8-25 como escala das fundamentais. Por fim, como complemento a 3-4A, 9-4B. Tente explorar essa relações em uma progressão, dividindo e combinando verticalmente e horizontalmente as estruturas geradas.

    3 Combinar ciclos

    Outra opção é usar os ciclos intercaladamente com coeficientes de interferência do mesmo modo que fizemos com as progressões diatônicas. Isso gera, o que Keith Waters chama de progressão axial dupla:

    Uma progressão axial dupla surge através de pares de acordes transpostos sistematicamente. Por exemplo, nos compassos 21–24 de Moontrane, de Woody Shaw, ocorre uma progressão mais ampla baseada no eixo de terça menor, formada pelos acordes Gm7–Fm7–B♭m7–A♭m7–C♯m7–Bm7. Essa progressão de duplo eixo é indicada neste livro como m3 (−M2, +P4): m3 representa o movimento entre os dois eixos harmônicos, enquanto os valores entre parênteses indicam a direção (+ para cima, − para baixo) e a distância entre as harmonias consecutivas dentro de cada par.

    Progressões axiais duplas geram pequenas células que se repetem em uma progressão maior. No exemplo acima c10 (ciclo segunda menor descendente) e c5 (ciclo de quarta justa) combinam-se para formar c3 (ciclo de terças menores ascendentes). A célula gera uma progressão de fundamentais que corresponde à classe 3-7A T10 (A03) e que repete-se sobre c3. Observe que, como conjunto ordenado (ou seja 0A3) a última nota da primeira célula é a primeira da segunda célula (316) e assim por diante. 

    Utilizando o tricorde e os ciclos da seção anterior (3-4A e c2, c3 e c4) podemos gerar combinações binomiais, trinomiais e polinomiais entre os ciclos. Com esses intervalos é possível gerar seis progressões binomiais, que geram as células de fundamentais 3-7A e 3-7B (sobre c5), duas rotações de 3-8A (sobre c8) e duas rotações de 3-10 (sobre c9).

    Também é possível gerar seis progressões trinomiais, que geram células de cardinalidade 4 repetindo-se sobre c11: 4-12A, 4-13A, 4-13B, 4-Z15A e 4-Z15B.

    Diferentemente das progressões binomiais, as progressões trinomiais – geradas pelos intervalos selecionados pelo processo da seção anterior – geram células que possuem a mesma extensão (11 semitons neste caso) e, portanto, repetem-se sempre sobre o mesmo ciclo. Isso tem duas implicações:

    1. É possível estruturar uma progressão geral sobre c11 (0BA98…) e a cada fundamental desta progressão selecionar uma célula diferente. Pode-se escolhê-las aleatoriamente, ou criar alguma regra de seleção e recorrência para cada célula. De qualquer modo, isso mantém a continuidade (sobre c11), mas produz maior variação. No exemplo abaixo, a progressão c11 é notada com cabeça vazada e os tetracordes são variados entre elas.
    1. É possível desconsiderar a última nota da célula e simplificar a progressão: em vez de 4-13A sobre c11, podemos nos referir a 3-7A sobre c11, obtendo o mesmo resultado. No exemplo abaixo, uma mesma progressão de fundamentais é notada como 3-7A sobre c11 e como 4-13A sobre c11.

    A vantagem de notar com tricordes, como tenho insistido, é que é mais fácil pensar com eles: há menos conjuntos de cardinalidade 3 (12 classes em comparação com as 29 de cardinalidade 4), eles são mais simples e é mais fácil de combiná-los em estruturas maiores. 

    Falando em combinar tricordes, como fizemos na seção anterior, podemos agrupar os tricordes discretos e criar progressões de hexacordes. Na progressão acima, por exemplo, temos 3-4A T0 (015) + T2 (237) formando 6-9A T0 (012357) seguido de 3-4A T5 (56A) + 3-4A T11 (B04) formando 6-7 T4 (456AB0) e assim sucessivamente.

    Tricordes3-4A T03-4A T23-4A T53-4A T113-4A T13-4A T43-4A T103-4A T0
    Soma6-9A T0 (012357)6-7 T4 (456AB0)6-14A T1 (124569)6-9A T10 (AB0135)

    Se tratarmos os tricordes somados como dois grupos instrumentais diferentes, temos progressões diferentes em cada voz e uma progressão geral dos hexacordes. O mesmo pode ser feito também com o complemento, de modo que a progressão mova ordenamentos de toda a escala cromática.

    2º tricorde3-4A T23-4A T113-4A T43-4A T0
    1º tricorde3-4A T03-4A T53-4A T13-4A T10
    Soma6-9A T0 (012357)6-7 T4 (456AB0)6-14A T1 (124569)6-9A T10 (AB0135)

    Evidentemente, também é possível criar progressões polinomiais, com polinômios tanto para a progressão das fundamentais, como por exemplo 1C2 + 2C3, quanto para as estruturas, por exemplo 2 3-4A + 3-7A. Ainda podemos interferir os polinômios e criar progressões maiores.

    4 Usar parcialmente, superimpor ou usar como enquadramento e preencher

    Para acabar este texto de uma vez, vou apontar rapidamente mais alguns usos:

    1. Excetuando os sistemas de duas e três tônicas, é possível usar as progressões em parte, sem a necessidade de completar o ciclo ou uma progressão progressão polinomial. O uso parcial deixa a progressão menos óbvia e pode ser usada mesmo como o que o Philip Tagg chama de chord shuffle.
    2. Num contexto modal ou tonal, podemos super impor as sistemas axiais parciais sobre a progressão. Um exemplo interessante que Rick Beato propõe no Beato Book é superimpor um sistema de seis tônicas parcial sobre um blues de 12 compassos. Aqui as rearmonizações de Coltrane são o exemplo paradigmático e recomendo a leitura de John Coltrane Plays “Coltrane Changes” Songbook de Masaya Yamaguchi. Superimpor é sair com o objetivo de voltar – num contexto como no blues, voltar para os acorde chave (I7,IV7 e V7) aproximadamente nas posições importantes (1º, 5º e 9º compassos). Num contexto modal, voltar aos acordes primários e ao modo específico. É importante manter a frase e usar a superimposição para aproximar cromaticamente as notas alvo. Liebmann sugere nem seguir um ciclo contínuo, nem utilizar acordes constantes pra evitar monotonia e previsibilidade. Superimpor progressões polinomiais pode dar conta disso. 
    3. Usar a progressão simétrica de fundamentais como enquadramento e preencher com acordes, arpejos, classes de conjunto, fragmentos melódicos ou para desenvolver licks previamente desenvolvidos na sua linguagem. Isso é, abandonar preocupações formais em favor de uma linguagem simétrica que tem as divisões da oitava (ou seja, as tônicas) como meta tonal, em vez de ter a macroharmonia como objeto.,
    4. Usando uma estrutura constante de classes de notas (por exemplo a escala diatônica ou 7-35) construída sobre uma progressão de fundamentais, mas alterando a tônica. Podemos usar, por exemplo, um sistema de 3 tônicas (C Eb G#) e gerar, por exemplo:
      1. Construíndo a escala maior sobre cada uma das tônicas e usando seus modos: C jônio (C maior), C eólio (Eb maior), C# lídio (G# maior), A eólio (C maior), Ab lídio (Eb maior) e assim por diante.
      2. Construíndo modos da escala maior diferentes em cada tônica: C jônio, Eb eólio, G# lídio etc.

    Referências

    Bair, Jeff, Cyclic Patterns in John Coltrane’s Melodic Vocabulary as Influenced by Nicolas Slonimsky’s Thesaurus of Scales and Melodic Patterns: An Analysis of Selected Improvisations. Doctor of Musical Arts (Performance).

    Freitas, S. P. R. D. (2014). Ciclos de terças em certas canções da música popular no Brasil. Per musi, 125-146.

    Hannaford, M. E. (2023). Theory on the South Side: Muhal Richard Abrams’s Engagement with Joseph Schillinger’s System of Musical Composition. Journal of the Society for American Music, 17(1), 43-67.

    Messiaen, Olivier (1942). The Technique of my Musical Language, Paris: Alphonse LeDuc.

    Rochinski S. (2022). Modern Jazz Theory and Practice: The Post-Bop Era. Berklee Press.

    Slonimsky, Nicolas (1947). Thesaurus of Scales and Melodic Patterns. New York:Schirmer Books.

    Schillinger, Joseph (1946) The Schillinger system of musical composition. New York: Carl Fische

    Waters, K. (2019). Postbop Jazz in the 1960s: The Compositions of Wayne Shorter, Herbie Hancock, and Chick Corea. Oxford University Press.

  • Interferência #1 – Tricordes como Interferência entre Ciclos Intervalares

    Eu comecei este blog com a expectativa de produzir pequenos textos focados em um conceito específico apresentados de modo que fossem facilmente aplicáveis. Escrever os dois textos que postei até agora me mostraram que isso provavelmente não vai ser o caso. Está claro que deve haver pelo menos dois tipos de texto: textos longos explorando conceitos básicos e alguma outra coisa que seja mais curta, mais diretamente prática. Pensando nisso e no fato de que escrevi os dois primeiros textos para serem enterradas em outros assuntos que combinassem os dois, resolvi começar a escrever, em paralelo, um tipo diferente de textos que vou chamar de Interferências.

    A noção de interferência vêm do Sistema Schillinger de Composição Musical e sozinha daria uma série de textos que podem ser escritos no futuro, mas achei que valia roubá-la como título para esta série e, em uma versão adaptada, usá-la como base para este texto. De maneira muito simplificada, uma interferência, no sistema Schillinger, é uma combinação entre dois (ou mais) pulsos periódicos que resultam em uma estrutura rítmica nova. 

    Chamarei estes textos de interferências para marcar o fato de que, nelas, trata-se de fazer interagir, combinar, afetar mutuamente dois ou mais conceitos básicos de textos longos para produzir coisas novas e, de preferência, rapidamente aplicáveis. Achei apropriado começar primeira Interferência usando a noção de interferência, mas aplicada aos Ciclos intervalares na produção de tricordes, famílias de tricordes, redes de simultaneidades e etc.

    Este texto foi publicado com um complemento: um PDF contendo todas as transposições e relações das interferências discutidas neste texto. Além de ser mais completo, o documento possui as tabelas com mais qualidade. Não sei se é pura ignorância minha, mas não dei jeito de formatá-las direito nesta publicação e acabei usando prints em alguns casos. O complemento pode ser acessado aqui.

    Problema

    Este texto é motivado por um problema bastante prático: temos 19 tricordes, 43 tetracordes, 66 pentacordes e assim por diante, cada um com 12 transposições, certo número de rotações e aberturas a depender da cardinalidade… qualquer um deles pode, em princípio, seguir-se de qualquer outro e depois qualquer outro… manter a coerência de uma música ou mesmo de uma parte dela depende de limitar a quantidade de conjuntos utilizados e criar relações sonoras entre eles. Há inúmeras formas de fazê-lo, algumas por propriedades intrínsecas dos conjuntos, alguns por lógicas extrínsecas, alguns informados por um resultado sonoro a ser expandido, outros por um objetivo a ser atingido. Neste texto, vou explorar uma forma de reduzir a quantidade de tricordes e relacioná-los uns aos outros através da sua produção por ciclos intervalares para criar uma espécie de “campo harmônico”, ou pelo menos um campo limitado de possibilidades expansíveis de encadeamento de simultaneidades pós-tonais. Também espero que seja um exercício divertido relacionando o texto sobre Ciclos Intervalares e o texto sobre Conjuntos de Classes de Notas.

    Interferência entre Ciclos Intervalares

    Para tanto, vamos trabalhar com interferências entre dois ciclos de notas. Por interferência quero dizer: partindo da mesma nota (e nos nossos exemplos sempre C ou 0), construímos dois ciclos até eles se reencontrarem em outra nota comum e combinando as classes de notas de ambos na ordem em que aparecem. A interferência entre o ciclo de 2 e o ciclo de 3 semitons (que chamarei de 3:2, seguindo o padrão de Schillinger) gera a seguinte resultante (r)

    a: 036
    b: 0246
    r: 02346

    Observe que os ciclos continuariam, ambos repetindo-se após uma oitava, mas paramos a resultante no primeiro encontro entre eles após o ponto de partida. Poderíamos continuar, mas o ciclo teria a mesma estrutura intervalar (2,1,1,2) partindo de 6 e, para simplificar, preferirei utilizar a versão mais simples – i.e. mais compacta – de cada ciclo.

    Interferências dos ciclos de intervalos simples

    Para gerar as interferências, construímos os dois ciclos componentes (a e b) até que eles atinjam o MMC. Isso geralmente supera uma oitava, então é mais fácil começarmos somando inteiros e depois reduzir para uma oitava pela operação de módulo 12. Depois juntamos, na ordem ascendente dos inteiros, os dois ciclos. Por exemplo:

    6:5 (MMC: 30)

    a: 0 6 12 24 30
    b: 0 5 10 15 20 25 30
    r: 0 5 6 10 12 15 20 24 25 30

    Em seguida, reduzimos tudo para módulo 12, de modo que 6:5 gera um conjunto ordenado, ascendente: 0 5 6 A 0 3 6 8 0 1 6.

    Incluirei nesta publicação somente a versão reduzida a módulo 12 das interferências não-triviais. Caso queira consultar todas as interferências e as interferências sem módulo 12, elas estão disponíveis neste arquivo.

    Interferências não triviais (módulo 12)
    3:202346
    4:30346890
    5:202456810
    5:3035691003
    5:40458100348
    6:404680
    6:5056100368016
    7:20246781002
    7:30367902369
    7:404780248904
    7:505710238914611
    7:606702690461106
    8:303689034690
    8:5058103480168114
    8:60680460
    8:70782490481146018
    9:2024689100246
    9:40489046803480
    9:50591036813611049
    9:606906
    9:707926934110691683
    9:808946038049068340
    10:303691003689036
    10:404810048
    10:6061006806
    10:707102894611461280310
    10:80810480684
    10:9091068360492603100896
    11:20246810110246810
    11:30369110369100369
    11:404811048100489048
    11:505101138101691148927
    11:60611061006906806706
    11:70711291049116817836105
    11:8081141008948078460584
    11:90911610390896736059463
    11:100101181069482706105846342

    Algumas propriedades das interferências entre ciclos intervalares

    As interferências (tanto intervalares como rítmicas) repetem-se, como vimos anteriormente, após um intervalo específico. Este intervalo é sempre o mínimo múltiplo comum dos intervalos básicos dos ciclos componentes da interferência. No caso de 2 e 3, 6. No caso de 3 e 5, 15… e assim por diante. Em alguns casos, esse intervalo é a oitava, como em 3 e 4 (12), ou uma oitava composta, como 3 e 8  (24). Mas, geralmente, não é: a oitava é só um caso de repetição e equivalência entre outros.

    Algumas interferências são truncamentos de ciclos e vou considerá-las irrelevantes. Por exemplo, a interferência 6:3 gera 036, que é simplesmente o ciclo de 3 semitons incompleto. Todas as interferências entre números que são múltiplos um do outro geram ciclos intervalares incompletos e serão consideradas triviais. Na prática, outras interferências, como 9:6 também resultam em ciclos incompletos, mas as manti porque não se encaixavam na fórmula que usei para filtrá-las, isso é: numa interferência n:m, se m módulo n = 0.

    Cada interferência é um conjunto ordenado de classes de notas, como uma série dodecafônica. Deste modo, ele pode ser descrito por uma estrutura intervalar ordenada (uma sequência de intervalos ascendentes). A interferência 3:2, por exemplo, possui uma estrutura 2 1 1 2, isso é, começando em 0, sobe dois semitons para 2, um para 3, um para 4 e dois para 6. 

    A estrutura intervalar de uma interferência pode ser transpostas, de modo que a interferência pode ser construída iniciando em qualquer classe de nota. Para diferenciar a interferência abstrata e a interferência concreta (numa transposição específica), vou me referir à classe de interferência e interferência. Classe de interferência é o conjunto das interferências que possuem a mesma estrutura intervalar – ou seja, são criadas pela mesma combinação de ciclos intervalares – em todas as transposições. Vou me referir a elas como n:m (3:2, 5:4, etc), sendo que m é o ciclo menor. As interferências concretas são as transposições específicas e vou me referir a elas como n:m To, onde n:m é a classe de interferência e To descreve a transposição (o sendo o intervalo ao qual ela é transposta a partir de 0).

    A estrutura intervalar de uma interferência n:m sempre possui somente intervalos menores ou iguais a m (intervalo do ciclo menor). Por exemplo: 6:4, possui é composta pelos intervalos 4, e 2. Por fim,t odos os ciclos são simétricos em volta de um ponto central, ou seja, possuem a mesma estrutura intervalar “subindo” ou “descendo”.

    Tricordes Consecutivos

    As interferências podem ser usadas melódica ou harmonicamente, em partes ou em sua totalidade, do modo que o compositor achar apropriado. Neste texto, entretanto, me interessa segmentá-las em tricordes. Para isso, é preciso pegar emprestado da linguagem dodecafônica o termo tricordes consecutivo. Uma série dodecafônica é um conjunto ordenado de 12 notas, por exemplo: 0123456789AB. Qualquer conjunto ordenado de 12 notas pode ser dividido em uma sequência de 4 conjuntos de 3 notas sem notas em comum chamados tricordes contínuos, no nosso caso: 012 | 345 | 678 | 9AB. Ele também pode ser dividido em uma sequência de 10 conjuntos de 3 notas, no nosso exemplo: 012 | 123 | 234 | […] 89A | 9AB. Estes são os tricordes consecutivos da série. No dodecafonismo, tricordes discretos e consecutivos são usados para descrever a série e analisar certas propriedades geradas pro elas, como a saturação motívica da mesma.

    Tratarei as interferências do mesmo modo: dividindo-as em tricordes consecutivos para gerar a família de tricordes relacionadas através da interferência. Por exemplo 5:3 (03569A03) gera os tricordes consecutivos: 035 | 356 | 569 | 69A | 9A0 | A03. Na tabela, todas as interferências não-triviais foram divididas em tricordes.

    Obviamente, esta é uma forma desnecessariamente específica de notar os tricordes. Na tabela abaixo, optei por notá-las usando a notação de conjuntos (Classe, transposição). Neste caso, nosso exemplo 5:3 contém os tricordes: 3-7 I0, 3-2 I3, 3-3 T5, 3-3 I6, 3-2 T9 e 3-7 T10. O que, parece-me, é mais fácil de transpor para interferências começando em outras classes de notas.

    Observe que, em função da simetria das interferências, o primeiro e o último, o segundo e o penúltimo e (assim sucessivamente) tricordes são inversões um do outro (quando possível), de modo que, excetuando no caso de haver um tricorde central, cada classe de conjunto aparece pelo menos duas vezes no ciclo.

    Relações entre Interferências

    Ainda assim, esta forma de notar pode ser simplificada para identificar melhor o conteúdo de tricordes das interferências. Na tabela abaixo, reduzi a tabela acima, removendo inversões e transposições e mantendo somente que tipos de Classes de Conjunto são produzidas por cada classe de interferência.

    Classes de Conjunto Geradas por Cada Interferência
    3:23-23-1
    4:33-33-23-6
    5:23-63-23-1
    5:33-73-23-3
    5:43-43-33-73-6
    6:43-83-6
    6:53-53-43-83-73-10
    7:23-63-23-1
    7:33-103-33-23-7
    7:43-113-33-43-83-6
    7:53-93-73-113-43-5
    7:63-53-93-83-113-10
    8:33-103-73-23-3
    8:53-113-73-93-53-43-12
    8:63-83-12
    8:73-43-53-83-93-113-12
    9:23-63-23-1
    9:43-123-43-33-113-83-6
    9:53-113-43-53-73-9
    9:63-10
    9:73-73-93-113-103-53-4
    9:83-33-43-73-83-103-113-12
    10:33-103-33-23-7
    10:43-123-83-6
    10:63-8
    10:73-73-113-83-53-43-9
    10:83-63-83-12
    10:93-23-33-63-73-103-83-113-9
    11:23-63-23-1
    11:33-103-73-23-3
    11:43-123-113-33-43-83-6
    11:53-93-53-43-113-7
    11:63-53-83-10
    11:73-43-113-73-53-9
    11:83-33-113-53-83-63-43-12
    11:93-23-73-43-113-53-103-3
    11:103-13-23-63-33-73-43-83-53-9

    Notadas deste modo, é mais fácil de observar qual o conteúdo de classes de notas – e consequentemente a sonoridade – de cada classe de interferência. A interferência 5:4, por exemplo, possui os tricordes 3-3 e 3-4 (acordes mistos de semitom), o tricorde 3-7 (acorde misto pentatônico) e 3-6 (acorde secundal de tons inteiros).

    Observe também que cada tricorde participa de (ou é gerado por) diversas interferências. Se imaginarmos que uma interferência gera um campo de possibilidades harmônicas – reduzida a um conjunto de classes de conjunto em transposições específicas – os tricordes compartilhados por mais de uma interferência funcionariam como acordes pivot entre duas interferências. Na tabela abaixo, organizei as interferências a partir dos tricordes que gera. O tricorde 3-1, por exemplo, participa das interferências 3:2, 5:2, 7:2, 9:2, 11:2 e 10:2.

    Além de tricordes comuns (ou pivot), as interferências podem possuir outra coisa em comum: o conjunto resultante. Na tabela abaixo, listo as interferências e as classes de conjunto resultantes de cada uma.

    Obviamente, podemos organizar esta informação ao contrário. Ou seja, partindo da classe resultante (independente da transposição), quais interferências resultam nela. Ainda que algumas Classes sejam geradas por somente uma interferência, aquelas que são geradas por múltiplas interferências possuem, em potencial, duas organizações diferentes de tricordes.

    Interferências por Classe Resultante
    3-10 T9:6
    4-21 T10:6
    4-24 T6:48:610:4
    5-33 T10:8
    5-8 T3:2
    6-Z28 T4:38:39:49:8
    6-Z29 T5:37:3
    6-Z37 T11:4
    6-Z42 T11:3
    6-Z45 T10:3
    6-Z48 T5:47:4
    7-1 T11:6
    7-33 T5:27:29:211:2
    7-35 T6:57:6
    8-25 T10:9
    9-1 T11:8
    9-9 T8:58:7
    10-1 T11:9
    10-5 T9:59:7
    11-1 T10:711:10
    12-1 T7:511:511:7
    Tricordes gerados pelas Interferências de cada Classe de Conjunto
    4-24 T
    6:43-83-6
    8:63-83-12
    10:43-123-83-6
    6-Z28 T
    4:33-33-23-6
    8:33-103-73-23-3
    9:43-123-43-33-113-83-6
    9:83-33-43-73-83-103-113-12
    6-Z29 T
    5:33-73-23-3
    7:33-103-33-23-7
    6-Z48 T
    5:43-43-33-73-6
    7:43-113-33-43-83-6
    7-33 T
    5:23-63-23-1
    7:23-63-23-1
    9:23-63-23-1
    11:23-63-23-1
    7-35 T
    6:53-53-43-83-73-10
    7:63-53-93-83-113-10
    9-9 T
    8:53-113-73-93-53-43-12
    8:73-43-53-83-93-113-12
    10-5 T
    9:53-113-43-53-73-9
    9:73-73-93-113-103-53-4
    11-1 T
    10:73-73-113-83-53-43-9
    11:103-13-23-63-33-73-43-83-53-9
    12-1 T
    7:53-93-73-113-43-5
    11:53-93-53-43-113-7
    11:73-43-113-73-53-9

    Um exemplo simples são as interferências que geram 4-24 (6:4, 8:6 e 10:4). Os três ciclos transpostos para gerar 4-24 T4 (4680) dividem 3 tipos de tricordes entre si, sendo que esses tricordes estão na mesma transposição 3-6 T4, 3-8 T6 e 3-8 I0 e 3-12 T0. 6:4 possui só 3-6 e 3-8; 8:6 possui só 3-8 e 3-12 e 10:4 possui os três tricordes.

    Entretanto, há diferenças quando consideramos o módulo, isso é, onde a interferência se repete. As interferências 6:4 e 8:6 repetem-se a cada oitava (composta no caso de 8:6 e simples de 6:4), mas 10:4 repete-se a cada 8 semitons. Se continuássemos a interferência, após o fechamento do primeiro módulo, a próxima iteração de 10:4 aconteceria sobre 4-24 T0 e depois T8, enquanto as próximas iterações de 6:4 e 8:6 aconteceriam sempre sobre a mesma transposição de 4-24. Isso faz com o que o conteúdo completo de 10:4 envolva mais duas transposições de cada um dos tricordes.

    Isso nos leva a outra forma de relacionar as interferências: o módulo delas. Por módulo quero dizer qual o intervalo no qual a escala se repete. É curioso, mas retornamos a noção de ciclo: o módulo reinscreve as interferências em ciclos intervalares. O ciclo 11:5, por exemplo, repete-se a cada semitom, ou seja, o padrão intervalar dele existe em um ciclo c7 e é como se a interferência contivesse, naturalmente, outro ciclo. Por outro lado, é como se, para a interferência se completar, ela precisasse passar por esse ciclo inteiro – o que liga ela a outras transposições dela, como modulações óbvias ou a extende por um espaço maior. Também é como se pudéssemos conectar interferências diferentes por módulo.

    Interferências por módulo
    MóduloInterferências
    04:36:48:38:69:49:8
    27:211:10
    35:39:711:9
    47:48:510:811:8
    511:7
    63:26:57:69:29:610:310:610:911:6
    711:5
    85:48:710:411:4
    97:39:511:3
    105:210:711:2
    117:5

    Um caso simples: as interferências 3:2 e 6:5 repetem em módulo 6 (ainda que 6:5 repita-se a 6 semitons duas oitavas acima) não compartilham uma classe resultante ou qualquer acorde, mas é como se elas compartilhassem um quadro comum. Não é uma relação forte, e seria preciso algum esforço pra torná-la audível, mas é uma relação a considerar quando estiver buscando relacionar, de maneira menos óbvia, duas interferências. Na tabela abaixo, agrupei por módulo as classes resultantes das interferências.

    Provocações e Conclusões

    O que fazer com tudo isso? Compor ou improvisar. O que isso tudo nos mostra é uma série de relações entre classes de conjunto, ciclos e interferências: escolha uma interferência, uma classe, um ciclo, um módulo e encontre suas relações. Tente fazê-las audíveis – ou não. Use-as como formas de gerar contraste ou de expandir uma ideia.

    Ciclos geram interferências. Interferências contém tricordes, geram classes resultantes, possuem módulos. Tricordes conectam interferências.

    Comecemos com 4:3: ela contém três conjuntos 3-2, 3-3 e 3-6; resulta em 6-Z28 e é módulo 0 (não é uma interferência transpositora). Através dos tricordes, 4:3 pivota para outras interferências (5:3, 7:3, 5:4, etc). Através de Mod 0, encaixa-se e aninha-se com outras em um mesmo ciclo (c12). Através de 6-Z28, compartilha notas com outras interferências. O caótico mapa abaixo descreve estas relações.

    É interessante notar a predominância de potências distributivas dos componentes: 4 e 3 viram 2 e 6, 8 e 9. Mas também estranhezas como 5, 7, 11. Pode se tornar paralizante outra vez, mas a ideia é oferecer opções: comecemos com 4:3. O verso será escrito usando seu campo de possibilidades harmônicas. O refrão será escrito em 9:4 ou em 5:2. Quem sabe uma voz explore 11:2 enquanto o baixo segura 4:3. Ou simplesmente limitemos: começamos de 3-2, e decidimos realizar 3-2 em 4:3 para usar 3-3 e 3-6. Quem sabe a melodia seja em 6-Z28, enquanto a sequência de simultaneidades segue os limites de 4:3.

    Para facilitar a exploração desta lógica, organizei em um PDF uma série de tabelas contendo todas as transposições de classes de interferências e as relações entre elas que discuti neste texto.

  • Que acorde é esse?

    Já te aconteceu de estar divagando em um instrumento ou em um DAW, encontrar um acorde diferente ou pouco usual e se perguntar: que diabo é isso? Como eu descrevo, dou nome, comunico ou anoto isso? De onde isso vêm? Que outros acordes soam parecidos? 

    A maior parte dos acordes que encontramos no dia-a-dia são truncamentos de alguma escala do sistema diatônico ordenada em terças – o que gera uma grande variedade de acordes facilmente nomeáveis: as tríades maiores, menores, aumentadas, diminutas e suspensas; com as sétimas maiores, menores e diminutas; com as extensões de nona, décima primeira e décima terceira e as eventuais alterações de quaisquer dos seus componentes. Mas não é esse tipo de acorde que me interessa neste texto – exceto como caso particular de um enquadramento maior. As tríades (maiores, menores, aumentadas, diminutas e suspensas) são somente 5 casos entre 19 possíveis estruturas de 3 classes de nota. Todos os acordes completos da escala diatônica (com tônica, terça, quinta, sétima, nona, décima primeira e décima terceira), são somente rotações de um caso entre 66 estruturas de 7 classes de nota. 

    Uma parte considerável das estruturas de sete notas pode ser descrita como uma alteração da escala diatônica, resultando em nomes bizarros como, por exemplo: Cmaj7b5(b9,11,#13). Mas nomeá-las deste modo ainda é assumir que estas estruturas seriam construídas primariamente como sobreposição de terças. Como descrever, usando essa lógica, uma estrutura composta por C, C# e D? Quem sabe: C#maj7(b9) com terça e quinta omitidas? Ou então C(b9,9) com terça e quinta omitidas? Ou Dmaj7(#6) com terça e quinta omitidas? Todos jeitos desconfortavelmente complicados de nomear uma estrutura que, descrita, ocupa menos espaço e que é construída por uma lógica diversa da sobreposição de terças que fundamenta a linguagem tonal.

    É pra isso que servem outras tipologias de simultaneidades – e de estruturas musicais em geral. Neste texto quero explorar algumas formas de gerar, dar nome e entender as estruturas de classes de nota fora da lógica tonal de tríades, tétrades, extensões e alterações.

    Neste texto, quero apresentar métodos que tornam mais simples e intuitivo entender essas estruturas, ajudando a expandir sua abordagem musical. Não pretendo, entretanto, que ele dê conta de todas as formas de nomear todas as estruturas de classes de notas, mas que introduza algumas ideias: a tipologia de acordes a partir da sua produção, como descrita por Vincent Persichetti e Stefan Kotska; a tipologia da teoria de conjuntos descrita por Howard Hanson e Allen Forte, mas mais pedagogicamente explicada por Joseph Straus e Miguel Roig-Francolí; e, por fim, um esquema de cifragem baseado em algumas interpretações dos conjuntos da teoria pós-tonal com um viés mais tonal – ou pelo menos diatônico na sua descrição – descrita por Júlio Herrlein.

    Além disso, ainda que estas tipologias possam descrever e analisar acordes de qualquer tamanho – e, na prática, em qualquer sistema de notas – vou me limitar nas ilustrações às estruturas de três e quatro notas (com algumas exceções) dentro do sistema temperado de doze tons. Assim, espero evitar escrever um texto exaustivamente longo, mas, quem sabe, abrir as portas para uma exploração mais detalhada.

    De qualquer modo, espero que este texto sirva para lhe dar informações para analisar suas próprias ideias ou para encontrar novas estruturas de classes de notas. Convido o leitor a tomar seu tempo explorando os tricordes e ideias apresentadas, testando compor e improvisar com elas. 

    Para facilitar essa experimentação, este post vêm com dois materiais complementares: um dicionário de formas-acorde para violão/guitarra contendo as três rotações de cada um dos 19 tricordes da escala cromática em posição aberta e fechada em diferentes cordas; e, para quem prefere um DAW a um violão, um midi pack contendo todas as transposições dos 19 tricordes, nas três rotações, em posição fechada e aberta.

    Uma introdução sobre notação com inteiros

    Antes de começar a discutir as tipologias propriamente ditas, preciso introduzir uma forma de descrever o conteúdo das estruturas de classes de notas: a notação com inteiros. Ainda que esta notação possa ser incômoda no começo, ela tem algumas vantagens: 1) abandonar o viés diatônico da notação com letras (C, D, E, F…); evitar os problemas de nomenclatura que surgem da enarmonia (G# = Ab; E# = F e etc); e gerar uma notação mais limpa e mais fácil de entender (descrever o conteúdo de Caug como 048 em vez de C E G#). Nos exemplos notados, utilizarei o pentagrama tradicional, mas para a escrita e análise, a notação com inteiros gera um texto muito mais agradável e uma lógica mais simples.

    A notação com inteiro nada mais é do que substituir as letras (C, C#, D…) ou o solfejo (Dó, Dó sustenido, Ré…) por números inteiros (0, 1, 2…), identificando 0 com C. Geralmente A# (ou Bb) e B, que seriam 11 e 12, podem ser substituídos por uma letra, A e B ou T e E para manter todas as notas com um dígito. Rapidamente, a gente se acostuma a pensar as classes de nota com inteiros, mas vou deixar abaixo uma tabela de referência para facilitar a leitura.

    0C
    1Dó sustenido, Ré bemolC#, Db
    2D
    3Ré sustenido, Mi bemolD#, Eb
    4MiE
    5F
    6Fá sustenido, Sol bemolF#, Gb
    7SolG
    8Sol sustenido, Lá bemolG#, Ab
    9A
    A (10)Lá sustenido, Si bemolA#, Bb
    B (11)SiB

    Usando notação de inteiros, também podemos nos livrar de outra forma de notação infestada de diatonismo: a nomenclatura de intervalos baseada na escala diatônica (segundas, terças, quartas, etc…). Na notação com inteiros, descrevemos os intervalos também como números, que descrevem a quantidade de semitons no intervalo. O intervalo entre 0 (C) e 4 (E), por exemplo, é 4 (4-0=0) assim como o intervalo entre 3 (Eb) e 7 (G) é (7-3=4). Para evitar confusão adicionamos “i” ao número para caracterizá-lo como um intervalo, então o intervalo entre 3 e 7 é i4.

    Geralmente nos referimos ao intervalo pela menor distância possível entre as duas classes de nota, por exemplo, entre 0 (C) e 7 (G) temos um intervalo de uma quinta justa (7 semitons) ou de uma quarta justa (5 semitons) e nos referimos ao intervalo como ic5 (classe intervalar 5, que contém dois intervalos: 5 e 7 semitons). A fórmula para isso pode parecer complexa, mas pode ser simplificada: mínimo (x-y módulo(12) ou y-x módulo(12)). Ou seja o menor valor possível da diferença entre as classes de nota, módulo 12. Um jeito simples é encontrar o intervalo positivo entre as notas, no nosso caso 7-0=7 e subtraí-lo de 12 (12-7=5). Como 5 é menor que 7, a classe intervalar é ci5.

    Outro jeito simples é imaginar e um relógio como na imagem abaixo e buscar o caminho mais curto entre as duas classes de nota. Em sentido horário, de 0 a 7 são 7 semitons (ou horas…) de 7 a 0 são 5 semitons, então a classe de intervalo é ci5.

    Acredito que rapidamente é possível se acostumar com essa notação também, mas deixarei abaixo uma tabela para consulta e para facilitar a explicação.

    SemitonsIntervaloClasse IntervalarNome diatônico
    1i1ci1Segunda menor
    2i2ci2Segunda maior
    3i3ci3Terça menor
    4i4ci4Terça maior
    5i5ci5Quarta justa
    6i6ci6Quarta aumentada/Quinta diminuta
    7i7ci5Quinta justa
    8i8ci4Sexta menor
    9i9ci3Sexta maior
    10i10ci2Sétima menor
    11i11ci1Sétima maior

    Resumi bastante e deixei de lado noções importantes para a teoria pós-tonal, mas isso será o suficiente para a nossa discussão. Caso você queira saber mais sobre notação com inteiros, o primeiro capítulo de Introdução à teoria pós-tonal de Joseph N. Straus é bastante detalhado e muito mais completo do que este texto.

    Geração de acordes por intervalos

    Tanto Vincent Persichetti (em Twentieth Century Harmony: Creative Aspects and Practice) e Stefan Kotska (em Materials and Techniques of 20th Century Music) organizam sua descrição dos acordes a partir de um processo de construção baseado nos intervalos genéricos da escala diatônica: segundas, terças e quartas (sendo que quintas, sextas e sétimas são inversões delas – ou, nos nossos termos, são da mesma classe intervalar). A ideia é gerar acordes a partir da repetição iterativa de um tipo de intervalo genérico a partir de uma tônica. Por exemplo:

    1. O acorde de dó maior (047) é construído partindo de dó (0) e adicionando terças, uma maior (ci4) e uma menor (ci3).
    2. O acorde Csus (057) é uma inversão (reordenação) de um acorde construído por quartas justas, partindo de 7: 705.
    3. A forma usual de tocar um acorde dominante com nona no violão (024A) – ou seja, com a quinta omitida – é uma inversão de um acorde construído por segundas maiores partindo de Bb: A024.

    Por intervalo genérico diatônico quero dizer as segundas (menor [ci1] e maior [ci2]), terças (menores [ci3] e maiores [ci4]) e quartas (justas [ci5] e aumentadas [ci6]) possíveis dentro da escala diatônica. A linguagem pode soar diatônica demais para um contexto pós-tonal, mas vejo duas vantagens em pensar assim: em primeiro lugar, conecta uma linguagem pós-tonal com a linguagem já bem estabelecida dos intervalos diatônicos; em segundo lugar, permite que cada categoria de acorde seja produzida por um intervalo genérico que possui duas formas, evitando que os acordes virem simplesmente ciclos intervalares, como os que discuti em outro texto. Essa lógica permite explorar tanto acordes familiares – como tríades e tétrades – como estruturações mais exóticas. 

    Há ainda categorias de simultaneidades que não são produzidas pela repetição de um intervalo genérico: acordes mistos, policordes e acordes espelhados. Acordes mistos, como 014, são produzidos por intervalos genéricos diferentes (segunda e terça neste caso, ci1 e ci3). Policordes são criados pela combinação de duas outras simultaneidades, geralmente tríades. Acordes espelhados são uma categoria especial de policorde, gerada pela combinação de duas estruturas simétricas em relação a um eixo de simetria. 

    Nos próximos parágrafos, vou descrever os acordes gerados por este processo – vários, certamente, familiares ao leitor – a começar pelos acordes baseados em terças. Ainda que, pra fim de exercício, seja interessante praticar compor ou tocar com utilizando um único tipo de acordes por vez, é importante dizer que isso não é uma regra para uma composição real. Como diz David Cope: 

    A música baseada em intervalos diferentes de terças não precisa evitar a harmonia tercial (acordes construídos em terças), mas pode, em vez disso, ampliar as convenções triádicas de harmonia e melodia. […] A maioria das obras bem-sucedidas não consiste inteiramente de um único intervalo. […] Intervalos centrais devem predominar, mas sem desequilibrar os demais intervalos. (COPE,, p.47)

    Terciais

    Ainda que os acordes baseados em terças não se encaixem no nosso problema – i.e. da nomeação de estruturas de classes de notas fora da tradição tonal – eles são um bom ponto de partida. Isso porque eles são, em primeiro lugar, pela sua familiaridade, uma boa ilustração do processo e da linguagem que utilizaremos. Em segundo lugar, eles são também materiais usados na música pós-tonal, ainda que de formas diferentes daquelas da prática comum. Como diz Kotska:

    Grande parte da música do século XX também é essencialmente terciária [construída sobre terças], mas, além disso, há uma quantidade significativa de música que utiliza acordes construídos a partir de 2as, de 4as e de combinações de vários intervalos. (2018)

    Os acordes terciais são aqueles construídos pela repetição sucessiva de terças (ci3 e ci4) a partir de uma nota inicial e podem ter qualquer tamanho de três a doze notas. Por conveniência, vou priorizar, como disse anteriormente, os conjuntos de três notas – que chamarei de tricordes – com um pouquinho sobre acordes de 4, 7 e 12 notas – respectivamente, tetracordes heptacordes e dodecacordes. 

    Há quatro estruturas geradas pela sobreposição de terças, idênticas às tríades tradicionais: os acordes diminutos, menores, maiores e aumentados. O tricorde diminuto (036) é gerado pela sobreposição de ci3. O tricorde menor (037) é gerado por ci3 e ci4 e o tricorde maior (047) é gerado por ci4 e ci3. O acorde aumentado (048) é gerado pela sobreposição de ci4. Observe que os tricordes maiores e menores possuem a mesma estrutura intervalar (ci3 e ci4), mas invertida. Isso é, o tricorde menor (037) pode ser pensado como ci3 e ci4 ascendendo a partir de uma nota dada enquanto o tricorde maior (047) pode ser pensado como ci3 e ci4 ascendendo a partir de uma nota dada. Os tricordes diminuto (036) e aumentado (048) não são inversíveis, pois possuem a mesma estrutura “subindo” ou “descendo” – são, em outas palavras, simétricos.

    É evidentemente possível continuar adicionando terças a esses acordes – que resultariam, geralmente, em tetracordes de sétima. Aos tricordes menores e maiores, é possível adicionar tanto uma terça menor, quanto maior, resultando em um tetracorde, respectivamente, de sétima menor (A) ou maior (B). Ao tricorde diminuto, também é possível adicionar uma terça menor ou maior, resultando respectivamente em uma tétrade de sétima diminuta (0369) ou menor com quinta diminuta (036A). Ao tricorde aumentado, só é possível adicionar uma ic3, resultando em CaugMaj7 (048B), pois ic4 resultaria fecharia o ciclo intervalar (0480…).

    A escala diatônica pode ser pensada como um heptacordes formado por uma sucessão de terças – e as descrições de acordescalas geralmente são interpretações terciais do conjunto diatônico: 037A258 seria o eólio (sexto modo da escala maior) organizado em terças: ci3, ci4, ci3, ci4, ci3, ci3. Uma ideia interessante é combinar transposições dos três tricordes terciais para formar a escala cromática: C (047) Ebm (36A) G#dim (8B2) e Aaug (915).

    Escala diatônica em terças e escala cromática construída como quatro tricordes em terças.

    É possível também gerar a escala cromática pela combinação de quatro transposições de um mesmo tipo de tricorde tercial. John O’Gallagher, em Twelve-Tone Improvisation (A Method for Using Tone Rows in Jazz), descreveu detalhadamente todas as combinações de um tricordes (exceto 036) para formar séries dodecafônicas (que resultam em uma escala cromática) e não repetirei as resultantes dele aqui. Também é possível continuar adicionando terças até atingir toda a escala cromática. Bruce Arnold, em My Music: Explorations in the Application of 12 Tone Techniques to Jazz Composition and Improvisation, descreve um dodecacorde que ele chama acorde de 23ª gerado pela repetição de terças.

    Acorde de 23ª tocado escalarmente em terças e como simultaneidade.

    Os acordes baseados em terças, como disse, podem ser usados para fazer música pós-tonal – e foram usados por Berg, Messiaen, Stravinsky, etc etc etc… – mas, como disse anteriormente, são acordes mais familiares. Quando passamos aos acordes baseados em segundas e em quartas, começamos a explorar sonoridades mais distantes da prática comum, ainda que, à excessão de 012, todos os tricordes secundais e quartais podem ser encontrados dentro da escala diatônica e usados como estruturas superiores em acordes tonais.

    Secundais

    Os acordes secundais são bastante versáteis em sua sonoridade, ainda que difíceis de conduzir parcimoniosamente, pela sua estrutura de classes de nota condensada: eles podem soar abrasivos e dissonantes – quase como um erro – podem soar abertos e etéreos, quando em posição aberta, e podem soar meio ocos e distantes quando organizados em sétimas. A versão mais comum dos acordes secundais são os clusters, que são formados ao tocar várias notas adjacentes, por exemplo, percutindo as teclas do piano com a mão espalmada ou com o antebraço e tocando todas as notas na região coberta por estas partes do corpo – algo que, creio, a maior parte das pessoas que interagiu com o piano já fez ao menos uma vez por diversão. Tides of Manaunaun, de Henry Cowell, utiliza esta técnica com um efeito impressionante.

    The Tides of Manaunaun, de Henry Cowell

    Há quatro estruturas geradas pela sobreposição de segundas. A sobreposição de duas segundas menores (ci1) gera o tricorde cromático (012). A sobreposição de duas segundas maiores (ci2) gera o tricorde de tons inteiros (024). Tanto 012 quanto 024 são simétricos e, portanto, não inversíveis. Há duas estruturas geradas pela sobreposição de ci1 e ci2: o tricorde 013 (ci1 + ci2) e o tricorde 023 (ci2 + ci1) que são inversão um do outro.

    Qualquer tricorde pode ser rotacionado, para que qualquer de suas classes de nota fiquem no baixo. Chamo de rotação, neste texto, o que na harmonia tonal, se chama de inversão, isso é: uma estrutura que contém as mesma classes de notas mas ordenadas diferentemente na realização. Abaixo, as três rotações de 024 são apresentadas em acorde e em seguida arpejadas.

    As três rotações de 024 tocadas como simultaneidade e arpejadas.

    Os tricordes, também podem ser tocados em posição aberta, isto é, ordenados de um modo que entre a nota mais aguda e a mais grave haja mais de uma oitava. Geralmente isso é feito, num conjunto de três notas, transpondo a intermediária em uma rotação uma oitava acima. Observe que, no caso dos acordes de segunda, a posição aberta da terceira rotação gera um acorde construído em sétimas. 

    As posições abertas, em especial da primeira e da segunda rotação, geram sonoridades bem mais amenas do que as posições fechadas tricordes acordes secundais. De fato, podemos adicionar mais uma nota um semitom acima ou abaixo do tricorde 024 (5 ou B), obtemos voicings tradicionais de violão para, respectivamente, Dm7(9) e Cmaj7(9). Se adicionarmos uma nota um tom acima ou abaixo, podemos obter voicings tradicionais para C7(9) e D7(9).

    Acordes de nona sem quinta tocados em voicing usual e como tetracordes secundais.

    Neste ordenamento, entretanto, os tetracordes começam a perder um pouco da sonoridade secundal, em função das terças e quintas que compõe a estrutura concreta deles. Do mesmo modo, um tetracorde maior com sétima maior (047B) começa a perder a sonoridade tercial se ordenarmos ele como uma sucessão de quintas e segundas (4B07).

    Cmaj7 ordenado em terças e ordenado em quintas e segundas, como Cmaj7/E.

    Tanto o tricorde cromático (012) quanto o tricorde de tons inteiros (024) podem ser combinados com transposições suas para formar a escala cromática sem repetir nenhuma nota. 

    Os tricordes 013 e 023 não conseguem sozinhos gerar a mesma estrutura, mas combinando duas transposições de cada, é possível fazê-lo.

    Ainda é possível combinar uma transposição de cada tipo de tricorde secundal (012, 013, 023 e 024) para gerar a escala cromática.

    Por fim, acordes terciais de seis e sete notas podem ser reordenados como acordes secundárias. No exemplo abaixo, um cluster de sete notas é formado como reordenação de C7(9,11,13) e um cluster de seis notas é formado como reordenamento de Cmaj7(9,#11)

    Quartais

    Os acordes quartais são ambíguos, melhores de conduzir, mas ainda assim costumam ser usados paralelamente. Pra mim, eles tem uma sonoridade plástica, vagamente modernista e estática, mesmo quando contém um trítono. Tanto Persichetti quanto Schoenberg, apontam que os acordes quartais surgem como decorações de acordes triádicos. A versão mais comum são os acordes suspensos, regularmente usados na música popular diatônica, às vezes chamados Csus, Csus4 ou, em outra inversão Csus2. Outra versão comum, ainda que ordenada com uma terça maior entre as duas vozes superiores, é o acorde “So What”. Alberto Ginastera organiza sua sonata para violão majoritariamente em volta de um acorde quartal formado pelas cordas soltas do violão – que também contém uma terça maior, mas é principalmente quartal. Tanto o acorde So What, quanto as cordas soltas do violão podem ser pensados também como um ordenamento da escala pentatônica.

    Miles Davis – So What (Official Audio)

    Alberto Ginastera – Sonata for guitar, Op. 47 (Score video)

    Há três tricordes gerados pela sobreposição de quartas (ci5 e ci6). A sobreposição de duas quartas justas (ci5) gera 05A, que pode ser reordenado como os acordes suspensos Bbsus2 (A05) e Fsus4 (5A0). As duas sobreposições de uma quarta justa (ci5) com uma quarta aumentada (ci6) geram: 05B (ci5 + ci6) e 06B (ci6+ci5) – as duas inversões do tricorde vienense. Não é possível gerar um tricorde por sobreposição de quartas aumentadas (ci6), porque isso geraria simplesmente um ciclo de seis semitons contendo duas notas (0 6 0…).

    Assim como os outros tricordes, eles podem ser tocados em três rotações, em posição aberta ou fechada. No caso do tricorde de quartas justas, a primeira rotação é o tricorde quartal “puro”, a segunda é o tricorde sus4 e a terceira é o tricorde sus2. A terceira posição da rotação aberta forma um acorde quintal – quintas justas (ci7), no caso 057 (ordenado como 507), ou diminutas (ci6) e justas (ci7) no caso de 05B (ordenado como B50) e 06B (ordenado como B60). As demais rotações dos tricordes quartais abertos geram acordes que misturam quintas e sétimas.

    Rotações dos 3 tricordes quartais em posição fechada.
    Rotações dos 3 tricordes quartais em posição aberta.

    O tricorde 05A pode ser combinado com suas transposições sobre um ciclo de três semitons para formar a escala cromática. Também é possível continuar sobrepondo quartas até formar o ciclo de quartas completo. Os tricordes vienenses só conseguem formar a escala cromática sem repetições se intercalarmos as suas inversões.

    É possível gerar um dodecacorde sobrepondo quartas justas até completar a escala cromática, sem repetir nenhuma nota. Também é possível gerar um dodecacorde partindo de uma nota e intercalando uma quarta aumentada (ci6) e uma quarta justa (ci5) até completar a escala cromática. Não é possível completar a escala cromática se começarmos com uma quarta justa.

    Dodecacorde construído sobre ci5 e dodecacorde construído sobre ci6 e ci5 alternados.

    É possível construir tricordes quartais sobre todos os graus da escala diatônica. No modo maior, os graus II, III, V, VI e VII são geram transposições do tricorde 05A. O grau I gera o tricorde 05B e o grau IV gera o tricorde 06B transposto i5 ascendente. 

    Por fim, todos os acordes completos da coleção diatônica podem ser construídos como heptacordes quartais. Começando em B é possível construir toda a escala diatônica com quartas justas. Em todos os graus, há uma quarta aumentada dentro do heptacorde. No exemplo abaixo, começando em 0, há uma quarta aumentada entre 5 (F) e 11 (B).

    Escala diatônica natural em quartas justas. Escala maior natural em quartas justas e aumentada.

    Acordes Mistos

    Eu havia mencionado que há 19 tricordes no sistema de doze notas. Até o momento, geramos 11 e já esgotamos os intervalos genéricos para construir tricordes por sobreposição deles. A última categoria de tricordes que discutiremos são aqueles gerados por intervalos mistos. Em certo sentido, 6 dos 11 tricordes que discutimos até agora são mistos: são gerados por classes intervalares diferentes, mesmo que agrupemos elas em intervalos genéricos idênticos. Se considerarmos a classe de intervalo, somente 012, 024, 036, 048 e 05A são tricordes gerados pela sobreposição de um intervalo; enquanto 013, 023, 037, 047, 05B e 06B são gerados por duas classes de intervalo. A diferença deles para os tricordes que vamos chamar de tricordes mistos neste texto é que não podemos usar tão facilmente a linguagem diatônica dos intervalos genéricos para descrevê-los do mesmo modo que as tríades. Para fins didáticos, vou adaptar a classificação das famílias de tricordes de Dariusz Terefenko e dividir os tricordes mistos em tricordes de semitom, de tons inteiros e pentatônicos.

    Tricordes de Semitom

    Os tricordes de semitom são aqueles gerados pela combinação de ci1 e outro intervalo (ci3 ou ci4). Tecnicamente poderíamos construir 05B e 06B como tricordes de semitom combinando ci1 e ci5 – gerando respectivamente B05 e 6B0 – ou combinando ci1 e ci6 – gerando B06 e 5B0, que são os mesmos acordes rotacionados. Entretanto já os geramos como sobreposição de quartas genéricas (ci5 e ci6) e as de semitom são simplesmente rotações delas.

    Há quatro tricordes de semitom: 014 e 034 (gerados duas combinações de ci1 e ci3) e 015 e 045 (gerados pelas duas combinações de ci1 e ci4). Em posição fechada, na primeira rotação, esses acorde tem um som bastante abrasivo, em função da segunda menor gerada entre as vozes. Entretanto, se rotacionarmos eles, ou tocarmos em posição aberta, eles soam mais consoantes e, em alguns casos, podem soar como shell voicings de tétrades ou como acordes com nona com notas omitidas.

    Tricordes de semitom tocados nas três rotações em posição fechada.
    Tricordes de semitom tocados nas três rotações em posição aberta.

    É possível combinar os tricordes de semitom com suas transposições para gerar uma escala cromática. No caso de 014, combinado com 034, há, pelo menos, duas opções:

    Duas combinações de transposições de 014 e 034 formando uma escala cromática.

    Também é possível continuar sobrepondo, alternadamente, c1 e c3, o que resulta em um hexacorde contendo todas as notas da escala hexatônica aumentada. Esta escala – e este processo em geral – é interessante, pois contém diversas instâncias dos tricordes 014 e 034, do mesmo modo que a escala diatônica contém 037 e 047, por exemplo.

    Este procedimento escalar não funciona com 015, que acaba gerando um icositetracorde ou uma escala de 24 notas sem repetição de oitava. Entretanto também é possível criar uma escala cromática combinando diferentes transposições de 015 e 045, como no exemplo abaixo.

    Tricordes de tons inteiros

    Os acordes de tons inteiros são subconjuntos da escala de tons inteiros e podem ser gerados pelas combinações de ci2 e ci4 (mas também poderiam ser gerados por quaisquer pares de intervalos da escala de tons inteiros). Tecnicamente 024 e 048 são tricordes de tons inteiros, mas não são acordes mistos e já geramos eles como sobreposições de segundas e terças respectivamente.

    Há dois tipos de acordes de tons inteiros: 026 e sua inversão 046. Apesar do trítono, estes acordes soam bastante suaves.

    Novamente, eles podem ser tocados em três rotações e em posições abertas, que tendem a soar mais brandas.

    É possível continuar adicionando ci2 e ci4 intercaladamente para produzir duas pequenas escalas ou tetracordes que são idênticos ao tetracorde de sétima dominante com quinta diminuta e, juntos, formam a escala de tons inteiros.

    As transposições de 026 e 046 podem ser combinadas para gerar uma escala cromática.


    Pentatônicos

    Os tricordes pentatônicos são subconjuntos da escala pentatônica e são gerados pela combinação dos dois intervalos de graus conjuntos da escala cromática: ci2 e ci3.

    Intercalando ci2 e ci3 é possível produzir um icositetracorde ou uma escala de 24 notas sem repetição de oitava que contém diversas instâncias internas da escala pentatônica e da escala diatônica.

    Assim como os outros tricordes – à exceção de 036 – é possível gerar uma escala cromática combinando transposições de 025 e 035.

    Com isso, encerramos nossa discussão sobre a produção de todos os conjuntos de três classes de notas possíveis no sistema de doze sons. Evidentemente é possível gerar acordes ainda maiores e há mais dezenas de acordes de quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez e onze notas que poderiam ser discutidos, mas isso seria exaustivo e de pouca utilidade neste contexto. Cabe ao leitor explorar outras possibilidades e usos destas estruturas. Uma sugestão é construir acordes combinando dois tricordes sem notas em comum para gerar policordes de seis notas – que espero descrever e catalogar, junto com uma discussão sobre compressão modal genérica em um texto futuro.

    Teoria de Conjuntos

    Agora que temos todos conjuntos de três notas, é hora de introduzir a teoria de conjuntos e, com ela, algumas formas de nomear cada um deles e suas relações. Dito de outro modo: agora é hora de começar a dar nomes específicos a cada um dos bois.

    Até agora, descrevi as estruturas que estamos discutindo de maneira ambígua: como acordes, estruturas de classes de notas, conjuntos, etc. Nesta seção vou me referir a elas como conjuntos de classes de notas, definidos como uma coleção não ordenada de classes de notas. Ou, como diz Straus: “motive from which many of the identifying characteristics—register, rhythm, order—have been boiled away.” (XXXX, p. 43). Dizemos que são uma coleção não ordenada, porque a ordem que atribuímos a ela para descrição e análise é indiferente em relação à música que estamos analisando ou compondo. O conjunto 047, por exemplo, pode aparecer como um acorde de dó maior em qualquer rotação – C, C/E, C/G – com notas duplicadas, arpejado ou tocado simultaneamente, em qualquer registro ou ritmo. Interessa-nos somente o conteúdo de classe de notas: 047. 

    Forma normal

    Geralmente, notamos os conjuntos em sua “forma normal” que é a forma mais compacta de apresentá-lo. Por “compacta” quero dizer: a forma, sem notas repetidas, e ordenada para obter o menor intervalo entre a primeira e a última nota, depois entre a primeira e a penúltima e assim sucessivamente. Neste caso o intervalo é sempre calculado ascendentemente, como se estivesse subindo uma escala ou, pensando novamente no relógio, em sentido horário. Considere os três ordenamento seguintes: 25A, A25 e 5A2. O primeiro (25A) possui um intervalo de 8 semitons entre a primeira e a última; o segundo (A25) possui um intervalo de 7 semitons; o terceiro (5A2), de 9 semitons. Logo a forma normal deste conjunto é A25.

    Transposição

    O conjunto A25 possui as mesmas classes de notas do acorde de Bb maior e o conjunto 047 possui as mesmas classes de notas de C maior. Não é coincidência ambos serem acordes maiores: eles possuem a mesma estrutura intervalar – isso é: uma terça maior (ci4) seguida de uma terça menor (ci3). Esses conjuntos são relacionados por transposição: A25 é 047 transposto 10 semitons acima ou dois abaixo:

    0 + 10 = 10 (A)
    4 + 10 = 14 -> 14 mod 12 = 2
    7 + 10 = 17 -> 17 mod 12 = 5

    Observe que, quando o número ultrapassa 11, precisamos reduzi-lo ao nosso espaço de notas, que vai de 0 a 11, realizando a operação de módulo 12. Outra opção, mais simples, é caso a transposição superar 11, utilizar o outro intervalo da classe de notas e subtraí-lo da nota original:

    0 + 10 = 10 (A)
    4 – 2 = 2
    7 – 2 = 5

    Todos os conjuntos relacionados por transposição pertencem a mesma família de conjuntos e geralmente nos referimos a eles pela versão mais compacta começando em 0. No caso dos conjuntos que estamos discutindo, todas as transposições do acorde maior, essa versão seria 047.

    Inversão

    Ao longo do texto, me referi a uma outra relação de parentesco entre os conjuntos: a inversão. Inversão aqui refere-se a inversão da estrutura intervalar do conjunto, de modo que inverter 047 (ci4 e ci3 ascendentes) vira 085 (ci4 e ci3 descendentes)

    0 – 4 = -4 ou 0 + 8 = 8
    8 – 3 = 5

    Já que -4 excede nosso espaço de notas, invertemos o sinal e trocamos para o outro intervalo de classe de notas: +8. A forma normal de 085 é 580 e ambos contém as mesmas notas de um acorde de Fá menor. Entre todas as transposições de 580, 037 é a forma mais compacta começando em 0 e esta seria a forma padrão deste conjunto. 

    Forma prima

    Como possuem a mesma estrutura intervalar, 047 e 037 pertencem a mesma família de conjuntos, mas é preciso decidir a forma padrão da família inteira: a forma prima. Para gerar a forma prima, buscamos a versão mais compacta de todas as transposições das duas inversões da estrutura intervalar, que, no caso dos conjuntos que estamos discutindo, é 037. Agora temos uma forma padrão para todas as tríades maiores e menores e uma relação entre elas e podemos dar só um nome a elas e referir-nos a todas as instâncias da família em relação a este nome. A este tipo de família chamamos Classe de Conjuntos. Na teoria pós-tonal, por razões que explicarei em breve, este nome é 3-11. O acorde de Sol maior (7B2), por exemplo, pode ser descrito como 3-11 I7, ou seja: 3-11 em sua forma invertida 047 (não prima), 047, e transposta 7 semitons ascendentemente.

    Nomenclatura

    Todos os conjuntos de classes de notas podem receber um nome semelhante e participam de uma classe de conjunto. Este nome tem duas partes: cardinalidade e ordinalidade. A cardinalidade é um número que indica o número de classes de notas contidos no conjunto (3 no nosso caso). Um conjunto com sete classes de notas diferentes começaria com 7. A segunda parte do nome diz respeito à posição do conjunto dentro de uma lista de todos os conjuntos da mesma cardinalidade. A ordem dos conjuntos nesta lista é determinada de uma maneira semelhante à determinação das formas normais e primas: os conjuntos mais compactos vêm primeiro. 

    Saber construir a lista – exceto na tentativa de recriá-la em um mundo pós-apocalíptico – é irrelevante e ela pode ser encontrada em vários lugares online e em livros. A wikipédia tem uma lista completa que ainda conecta os conjuntos com acordes e escalas com nomes mais tradicionais. Na lista da wikipédia, entretanto, há uma diferença na notação: os conjuntos aparecem seguidos de A e B quando possuem inversão, sendo A a prima e B a inversa.

    Há outras informações importantes na lista da wikipédia, como os complementos cromáticos de cada classe de conjunto – que são o resultado de subtrair o conjunto da escala cromática e recebem a mesma ordenação; o vetor classe intervalar – que é uma descrição do conteúdo intervalar do conjunto; e as relações Z – que são relações entre dois conjuntos da mesma cardinalidade que possuem estruturas intervalares diferentes mas o mesmo conteúdo intervalar. Não vou me aprofundar em nenhum desses tópicos, mas se houver interesse, escrevo algo sobre posteriormente. (As relações Z são particularmente interessantes e o uso dos conjuntos 4-Z15 e 4-Z29 pelo Elliot Carter são um exemplo que vale ser debatido).

    Os tricordes como conjuntos de classe

    Agora que temos uma nomenclatura para todos os conjuntos, podemos retomar nossos tricordes e redescrevê-los a partir da teoria de conjuntos.

    Os acordes que geramos pela sobreposição de terças já estão em sua forma normal: 036 é a forma prima de 3-10 e 048 é a forma prima de 3-12. O par 037 e 047 são ambos parte da classe 3-11, sendo que a forma prima é 037.

    (036) 3-10
    (037) 3-11
    (047) 3-11 I
    (048) 3-12

    Os acordes gerados por segundas também estão em sua forma normal: 012 é a forma prima de 3-1 e 024 é a forma prima de 3-6. O par 013 e 023 são respectivamente a forma prima e invertida de 3-2.

    (012) 3-1
    (013) 3-2
    (023) 3-2 I
    (024) 3-6

    Os acordes gerados por quarta não estão em sua forma prima. O tricorde quartal (05A) é uma transposição de 3-9 que tem como forma prima 027. A forma prima de 05B é 016 e a forma prima de 06B é 056, sendo que a primeira é a forma prima da classe de conjunto: 3-5.

    (016) 3-6
    (056) 3-6 I
    (027) 3-9

    Os acordes mistos já estão em sua forma normal.

    (014) 3-3
    (034) 3-3 I
    (015) 3-4
    (045) 3-4 I
    (026) 3-8
    (046) 3-8 I
    (025) 3-7
    (035) 3-7 I

    Essa linguagem é útil para descrever e analisar música pós-tonal, tanto no aspecto melódico como harmônico – essa música não é feita de puro caos, mas de estruturas com propriedades específicas, motivos mais ou menos abstratos que informam a linguagem – os materiais e as operações que se executam sobre eles. Ela também pode ser útil para compor: escolha uma ou duas classes de notas e tente escrever algo: uma sequência, uma melodia. Tente aninhar ou encaixar uma na outra.

    Outra utilidade interessante da teoria de conjuntos é criar uma forma de descrever a distância entre dois conjuntos quaisquer. No caso dos tricordes, esse incrivel diagrama de Miles Okazaki (em Fundamentals of Guitar) mostra os conjuntos em forma normal separados por semitom. Os conjuntos não inversíveis estão no meio do eixo vertical e as formas prima e invertida de cada classe estão espelhadas (observe 016 na extrema esquerda e 056 na extrema direita). Os conjuntos ligados por uma linha tracejada diferem somente um semitom um do outro. 

    A distância entre dois conjuntos específicos pode ser medida pela distância a ser percorrida entre os conjuntos no gráfico mais a transposição necessária. Nesta versão mais abstrata de Joseph Straus, as classes de conjunto em forma prima estão ligadas do mesmo modo.

    Ainda que esta linguagem seja útil, creio que, para a música popular é preciso uma linguagem mais específica e mais conectada à tradição. Penso especificamente em uma forma de cifragem. Quem, afinal, colocaria “3-8 T0 5-Z12 I8 4-25 T5” em cima de uma letra e esperaria lembrar rapidamente o que isso quer dizer. É o que nos leva, finalmente, à última seção – e ao objetivo – deste texto.

    Cifragem

    Ok. Você achou explorou seu instrumento ou num DAW, você achou uma sonoridade peculiar, você se dispôs a ler até aqui, entendeu a construção dessa sonoridade, a classe de conjunto, o vetor classe intervalar, o espaço tonal e a distância daquela sonoridade para todas as outas e você montou a sequência de acordes perfeita para aquele som acústico, voz e violão, baseado numa mistura de Legião Urbana e Alexander Scriabin. Como você descreve essa progressão de modo que seja minimamente compreensível para botar numa cifra ou num leadsheet e compartilhar com o resto da banda? É aí que entra o sistema incrível de cifragens proposto por Julio Herrlein em Combinatorial Harmony: Concepts and Techniques for Composing and Improvising. O livro de Herrlein é extenso e explora várias cardinalidades, escalas, ciclos intervalares e eixos tonais. Não vou descrevê-lo inteiro, mas focar na cifragem dos tricordes. Recomendo a leitura!

    A cifragem de Herrlein é baseada – como a nossa produção dos tricordes – em uma tipologia dos acordes pela sua construção. É importante notar que Herrlein assume uma nota como tônica para a descrição de cada acorde e esta nota raramente é a primeira nota das formas prima ou normal dos conjuntos ou a nota a partir da qual construímos o tricorde por intervalos.

    O Tipo A contém as tríades tradicionais, cifras da forma usual. O Tipo B contém os acordes formados por quartas e são cifrados pela qualidade e ordem das quartas. CQ3 descreve o tricorde de quartas justas (027); CQT descreve o tricorde formado por uma quarta justa seguida de um trítono (016) e CTQ descreve o tricorde formado por um trítono seguido de uma quarta justa (056). 

    O Tipo C contém os acordes com sétima sem a quinta e são notados: ou removendo notas de uma tétrade – por exemplo 3-4A (015) notado como C#7M(¬5) (Dó sustenido maior com sétima maior sem a quinta); ou notados com intervalos sobre uma nota – por exemplo 3-7A (025) notado como D^m7 (Ré com terça e sétima menores adicionadas); ou com uma descrição qualitativa – por exemplo 3-8 (026)  notado como Dit (ré com sexta italiana) – mas que poderia ser notado como D7(¬5).

    O tipo D contém os acordes de sétima sem a terça e são notados como notas adicionadas a um som. O tricorde 3-3B (034) é notado como E^7M(#5), ou seja, Mi com sétima maior e quinta aumentadas adicionadas. O tipo E são os clusters e contém todos os acordes construídos por segundas. Eles são notados também com notas adicionadas sobre um tom: 3-2A (013), por exemplo, é notado como Db^7M(9), ou seja, Ré bemol com sétima maior e nona adicionadas.

    Abaixo compilei uma tabela com cada um dos tricordes, seu tipo, a cifra, o voicing (isso é, como as notas estão dispostas, ascendentemente, na versão fechada, a partir da nota que Herrlein define como fundamental do acorde) e, por fim, o intervalo usado para produzir o tricorde – como discutido neste texto.

    ConteúdoCCTipoCifraVoicingIntervalo de Produção
    0123-1EDb^7M(b9)102Segundas
    0133-2AEDb^7M(9)103Segundas
    0233-2BED^7(b9)203Segundas
    0143-3ACC#^m7M140Mistos (semitom)
    0343-3BDE^7M(#5)403Mistos (semitom)
    0153-4ACDb7M(¬5)150Mistos (semitom)
    0453-4BDF^7M(5)504Mistos (semitom)
    0163-5ABDbQT160Quartas
    0563-5BBF#TQ605Quartas
    0243-6ED^7(9)204Segundas
    0253-7ACD^m7250Mistos (pentatônicos)
    0353-7BDF^7(5)503Mistos (pentatônicos)
    0263-8ACDit ou D7(¬5)260Mistos (tons inteiros)
    0463-8BDF#^7(b5)604Mistos (tons inteiros)
    0273-9BDQ3270Quartas
    0363-10ACdim036Terças
    0373-11AACm037Terças
    0473-11BAC047Terças
    0483-12ACaug ou C(#5)048Terças

    No livro, Herrlein descreve várias formas de tocar esses acordes na guitarra, mas, novamente, não tenho intenção de transcrever o livro dele aqui. Acesse o dicionário de tricordes que disponibilizei em um post acompanhando este para explorar alguns voicings.

    Spoilers

    Em postagens futuras, vou comentar outros usos tonais destes conjuntos, como o proposto por Dariusz Terefenko interpretando-os como estruturas superiores de acordes extendidos ou o sistema de compressão modal genérica de Mick Goodrick. Também outras formas de nomear acordes e escalas como o sistema de de Masaya Yamaguchi. Mas quero dar uma palhinha.

    Sobre a interpretação de Terefenko, é fácil ver, como, por exemplo, o tricorde 027 pode ser usado como parte de vários acordes diatônicos. Por exemplo GQ3/D (isso é 705 tocado sobre 2 no baixo) soa como um Dm7(11). GQ3/Ab e CQ3/Ab soam como Abmaj7(13) e Ab(9) respectivamente.

    A compressão modal genérica de Mick Goodrick diz respeito a pegar um acordescala, por exemplo Cmaj7(9,11,13), remover a tônica que resultaria num conjunto hexatônico (24579B) e organizá-lo como dois tricordes complementares dentro da escala. No nosso exemplo, poderiamos organizar a compressão modal genérica de dó maior como Dm (259) e Em (47B). Obviamente, tricordes mais ousados soariam mais interessantes.

    O sistema de nomeação de Yamaguchi usa a mesma notação da teoria de conjuntos, mas atribui M para a inversão e descreve qual rotação do conjunto se trata numerando-as com a,b,c, etc, sendo que a é a primeira inversão (a forma normal). Além disso atribui os intervalos baseados na escala maior. O conjunto que chamamos de F^7(5), por exemplo, seria um 3-7Mc, a terceira rotação de 3-7 invertido e seria descrito como 1 5 b7 – que poderíamos reescrever como F 5 b7.

    Referências

    Arnold, Bruce. My music: explorations in the application of 12 tone techniques to jazz composition and improvisation. Muse Eek, 2003.

    Cope, David. Techniques of the contemporary composer. Schirmer Thomson Learning.

    Goodrick, Mick, and Tim Miller. Creative chordal harmony for guitar: using generic modality compression. Berklee Press, 2012.

    Herrlein, Julio. Combinatorial harmony: concepts and techniques for composing and improvising. Mel Bay Publications, 2013.

    Kostka, Stefan, and Matthew Santa. Materials and techniques of post-tonal music. Routledge, 2018.

    O’Gallagher, John. Twelve-tone improvisation: a method for using tone rows in jazz. Advance music, 2021.

    Okazaki, Miles. Fundamentals of Guitar: A Workbook for Beginning, Intermediate or Advanced Students. Mel Bay Publications, 2015.

    Persichetti, Vincent. Twentieth Century Harmony: Creative Aspects and Practice. W. W. Norton & Company, 1961.

    Roig-Francolí, Miguel A. Understanding post-tonal music. Routledge, 2021.

    Straus, Joseph N. Introduction to post-tonal theory. WW Norton & Company, 2016.

    Terefenko, Dariusz. Jazz theory: From basic to advanced study. Routledge, 2014.

    Yamaguchi, Masaya. The Complete Thesaurus of Musical Scales. Masaya Music, 2006.

  • O que é um ciclo intervalar?

    Um ciclo intervalar é uma estrutura musical gerada pela repetição sucessiva de um intervalo fixo dentro de um sistema de classes de alturas – como o sistema de 12 tons iguais usado na música ocidental. Um ciclo intervalar é produzido somando-se iterativamente um intervalo a uma nota inicial até atingir esta nota outra vez. Um exemplo muito simples é a escala cromática, tocada nota a nota ascendentemente. Ela é produzida pelo ciclo intervalar de um semitom: C C# D D# E F F# G G# A A# B C.

    No sistema temperado de 12 tons é possível gerar 11 ciclos utilizando intervalos simples:

    Ciclo de segundas menores – 1 semitom: C C# D D# E F F# G G# A A# B C
    Ciclo de segundas maiores – 2 semitons: C D E F# G# A# C
    Ciclo de terças menores – 3 semitons: C Eb Gb A
    Ciclo de terças maiores – 4 semitons: C E G# C
    Ciclo de quartas justas – 5 semitons: C F Bb Eb Ab Db Gb B E A D G C
    Ciclo de quartas aumentadas – 6 semitons: C F# C
    Ciclo de quintas justas – 7 semitons: C G D A E B F# C# G# D# A# F C
    Ciclo de sextas menores – 8 semitons: C G# E C
    Ciclo de sextas maiores – 9 semitons: C A F# Eb C
    Ciclo de sétimas menores: C Bb Ab Gb E D C
    Ciclo de sétimas maiores: C B Bb A Ab G Gb F E Eb D Db C

    Ciclos de dois, três e quatro semitons. Note que vou utilizar cN para descrever o ciclo de N semitons e que a nota inicial e final (quando presente) do ciclo estarão vazadas. Evitei atribuir qualquer valor rítmico aos ciclos e sugiro interpretá-los, inicialmente, em tempo livre.
    Ciclo de segundas maiores (um tom)
    Ciclo de terças menores (três semitons)
    Ciclo de terças maiores (quatro semitons)
    Ciclos de cinco e seis semitons. Atente à mudança de clave no ciclo de quartas justas.
    Ciclo de quartas justas (cinco semitons)
    Ciclo de quartas aumentadas/quintas diminutas (seis semitons)
    Ciclo de sete e oito semitons. Atente à mudança de clave no ciclo de quintas justas.
    Ciclo de quintas justas (sete semitons)
    Ciclo de sextas menores (oito semitons)
    Ciclos de nove e dez semitons. Atente à mudança de clave no ciclo de sétimas menores.
    Ciclo de sextas maiores (nove semitons)
    Ciclo de sétimas menores (dez semitons).
    Ciclo de onze semitons, representado como um ciclo de segundas menores (semitom) descendentes.
    Ciclo de onze semitons, tocado como um ciclo de segundas menores (semitom) descendentes.

    Observe que os ciclos de 11, 10, 9, 8 e 7 semitons podem ser pensados como versões de trás pra frente (ou seja, retrógradas) dos ciclos de 1, 2, 3, 4 e 5 semitons respectivamente. Optei por notá-los como um intervalo ordenado ascendente para destacar algumas propriedades deles que serão relevantes mais tarde. A exceção é o ciclo de 11 semitons, que ocuparia uma quantidade muito grande de oitavas (de fato, maior que a tessitura do piano) e optei por notar como um ciclo de segundas menores descendentes.

    Ciclo de oito semitons e ciclo de quatro semitons descendente. Observe que as mesmas classes de notas são tocadas, mas em direção contrária.
    Ciclo de oito semitons seguido do ciclo de quatro semitons descendente.

    Assim, em certo sentido, temos na verdade seis famílias de ciclos que contêm, cada uma, à exceção do ciclo de seis semitons, uma versão ascendente uma descendente de uma classe de intervalo: um semitom (segundas menores e sétimas maiores), um tom (segundas maiores e sétimas menores), um tom e meio (terças menores e sextas maiores), dois tons (terças maiores e sextas menores), dois toms e meio (quartas e quintas justas) e três tons (quartas aumentadas – que não são inversíveis). Dependendo do contexto e do propósito, fará mais sentido pensar os ciclos intervalares de um ou de outo modo, o que explicarei mais detalhadamente adiante. No momento – e antes de considerar cada ciclo individualmente – quero destacar algumas qualidades gerais dos ciclos intervalares.

    Qualidades gerais dos ciclos intervalares

    Todos os ciclos intervalares possuem algumas qualidades comuns que os tornam, no geral, interessantes. Em primeiro lugar, todo ciclo intervalar repete-se após uma quantidade específica de oitavas e, portanto, divide esta quantidade de oitavas em partes iguais. Alguns ciclos dividem uma única oitava em uma quantidade de partes antes de repetirem-se. Chamarei estes de ciclos oitavantes. No sistema temperado, estes são os ciclos de segundas menores (doze partes), segundas maiores (seis partes), terças menores (quatro partes), terças maiores (três partes) e quartas aumentadas (duas partes). 

    Um segundo conjunto de ciclos são os ciclos que repetem-se após mais de uma oitava que chamarei de ciclos não-oitavantes. Estes ciclos dividem uma quantidade maior de oitavas em uma quantidade de partes. No sistema temperado, estes ciclos são os ciclos de quartas justas (cinco oitavas em doze partes), quintas justas (sete oitavas em doze partes), sextas menores (duas oitavas em três partes), sextas menores (três oitavas em quatro partes), sétimas menores (cinco oitavas em seis partes) e sétimas maiores (onze oitavas em doze partes).

    Em segundo lugar, como divide um espaço de notas (n oitavas) em partes iguais, todo ciclo é simétrico e, portanto, não possui, a priori – uma hierarquia tonal. Isso é, não é possível determinar uma tônica do ciclo pois todas as notas dele possuem a mesma gravidade tonal. Isso nos leva a terceira qualidade: o ciclo possui transposições limitadas, ou seja: uma quantidade limitada de transposições do mesmo ciclo antes de obtermos o mesmo resultado. Por exemplo, o ciclo de quatro semitons possui quatro transposições possíveis: C E G# | Db F A | D F# A# | Eb G B. A próxima transposição (E G# C) é idêntica à primeira (C E G#), mas começando em E em vez de C. Como os ciclos não possuem tônica começar em C ou E é indiferente, exceto pelo registro em que as notas ocupam, de modo que eles são o mesmo ciclo.

    Transposições do ciclo de quatro semitons. Observe que estou notando c4 – para ciclo de quatro semitons – e TN, onde N é o número de transposições, a partir de C, que o ciclo está transposto. Observe também que ainda que começe em E, c4 T4 contém as mesmas notas que c4 T0: C E G#.
    Transposições de c4 (T0, T1, T2, T3 e T4, que é possui o mesmo conteúdo de T0).

    Cada transposição de um ciclo intervalar cria um conjunto único de notas sem interseções com outras transposições, de modo que a combinação de todas as transposições diferentes de um ciclo gera a escala cromática sem repetir nenhuma nota.

    Por fim, os ciclos possuem relações uns com os outros, de modo que cada um pode participar ou gerar os outros ciclos. No exemplo acima, por exemplo, as quatro transposições do ciclo de terças maiores geram a escala cromática, que pode ser expressa como um ciclo de um, cinco, sete ou onze semitons. No exemplo abaixo, o ciclo de quartas justas (c5) foi construído sobre o ciclo de sextas maiores (c8).

    Ciclo de cinco semitons construído sobe o o ciclo de 8 semitons.

    A relação entre cada ciclo e a escala cromática gera um caminho para relacionar um ciclo ao outro e aninhar cada ciclo dentro da escala cromática, mas há outras relações entre eles que exploraremos na próxima seção.

    Um pouco mais sobre cada ciclo

    Além das qualidades gerais dos ciclos, cada ciclo possui qualidades próprias que os tornam especificamente interessantes. Nesta seção, apresentarei um pouco sobre cada ciclo, suas qualidades e relações com os outros ciclos. Por simplicidade começaremos com os ciclos oitavantes.

    O ciclo de segundas menores divide a oitava em doze partes iguais e é o único ciclo não-oitavante que possui todas as notas da escala cromática e somente uma transposição. Isso quer dizer que as notas resultantes do ciclo são as mesmas independentemente de sobre qual nota construirmos o ciclo. Para pensar ciclicamente, este ciclo é pouco útil, mas ele pode ser usado de maneira truncada (isto é só parte dele) para estruturar progressões axiais – sequências de acordes, geralmente da mesma qualidade, seguindo um ciclo intervalar – ou para ornamentações. Todos os outros ciclos são versões truncadas dele. 

    Ciclo de um tom

    O ciclo de segundas maiores divide a oitava em seis partes iguais, possui duas transposições e algumas relações dignas de nota com todos os outros ciclos. Em primeiro lugar, as famílias de ciclos de quatro e seis semitons são versões truncadas dele e ele pode ser pensado como uma combinação de ambas: um ciclo de quatro semitons construído sobre cada nota do ciclo de seis semitons ou um ciclo de seis semitons construído sobre um ciclo de quatro semitons.

    Transposições do ciclo de segundas maiores (dois semitons).
    Transposições do ciclo de segundas menores (dois semitons).
    Ciclo de dois semitons ordenado como combinações de c4 e c6. No primeiro compasso, um ciclo de quatro semitons é construído sobre cada nota de um ciclo de seis. No segundo com passo, um ciclo de seis semitons é construído sobre cada nota de um ciclo de quatro semitons. Observe que, para clareza da leitura, omiti a última nota (repetição da primeira) dos ciclos usados.
    Ciclo de dois semitons tocado como dois c4 construídos sobre um c6 seguido de um c2 construído como três c6 construídos sobre c4.

    O ciclo de quintas – e consequentemente a escala cromática – pode ser pensado como uma combinação das duas transposições do ciclo de segundas maiores. Se tocarmos o ciclo de quintas como uma quinta ascendente e uma quarta descendente, a sequência de notas mais agudas forma uma iteração do ciclo de segundas menores e a sequência de notas mais graves forma a outra iteração.

    Ciclo de sete semitons (quintas justas) ordenado como dois ciclos de segundas maiores (dois semitons) distantes uma quinta.
    c7 tocado como dois c2 a uma quinta justa de distância. Note que, para facilitar a audição dos três ciclos simultaneo,s a voz superior (c2 começando em sol) está na flauta, enquanto a voz inferior (c2 começando em dó) está no piano.

    Combinando partes dos dois ciclos é possível criar uma passagem totalmente cromática com a melodia seguindo uma transposição do ciclo e o acompanhamento seguindo outro. Isso mantém a sonoridade de tons inteiros, mas resulta num ambiente mais cromático. Também é possível formar acordes extraindo as vozes superiores de uma iteração e as inferiores de outra.

    O pianista e educador de jazz Barry Harris desenvolveu uma teoria fascinante que explora essa propriedade do ciclo de tons inteiros. De forma poética, ele descreve a escala cromática como o todo ou deus, e as duas escalas de tons inteiros como um casal que gera filhos. Esses filhos são acordes formados pela combinação de pares de trítonos retirados de cada escala. Por exemplo:

    • De uma iteração da escala (C, D, E, F#, G#, A#), extraímos C e F#.
    • Da outra iteração (C#, D#, F, G, A, B), extraímos Eb e A.
    • Juntas, essas notas formam um acorde diminuto (C-Eb-F#-A).

    A partir desse acorde diminuto, Harris demonstra como transformar as notas para gerar os outros acordes básicos de sua teoria:

    • Acorde dominante: Baixe qualquer nota do acorde diminuto por um semitom.
      • Exemplo: Baixando Eb para D em C-Eb-F#-A, obtemos D7.
    • Acorde menor com sexta maior: Suba qualquer nota por um semitom.
      • Exemplo: Subindo F# para G, obtemos Cm6 (ou Am7b5 em outra inversão).
    • Acorde maior com sexta maior: Baixe duas notas consecutivas.
      • Exemplo: Baixando C para B e Eb para D, temos D6 (ou Bm7 em inversão).
    • Acorde dominante com quinta diminuta: Suba ou baixe quaisquer duas notas não consecutivas.
      • Exemplo: Subindo Eb e A, temos C7b5; baixando, temos D7b5.

    Embora o foco deste texto não seja a teoria de Barry Harris, sua abordagem ilustra uma ideia poderosa: extrair subconjuntos (díades, tricordes, etc.) de diferentes iterações de um ciclo para criar acordes e texturas. Não explorarei aqui os acordes específicos que poderiam ser gerados com essa técnica, mas, caso haja interesse, posso apresentar uma explicação detalhada em outra publicação.

    Ciclo de três semitons (sesquitom)

    O ciclo de três semitons forma o familiar acorde de sétima diminuta que já discutimos parcialmente nos parágrafos acima. Este ciclo possui três transposições e o ciclo de seis semitons é uma versão truncada dele. O ciclo de quartas justas (5 semitons) pode ser dividido em três vozes com cada uma seguindo uma transposição do ciclo distando uma quarta justa entre si ou como quatro tricordes quartais construídos sobre o ciclo de terças menores.

    Transposições do ciclo de terças menores (três semitons). Observe que a próxima transposição hipotética, c3 T3, conteria as mesmas notas de c3 T0.

    Uma derivação interessante do ciclo de três semitons é a escala octatônica ou segundo modo de transposição limitada. Ela é formada pela combinação entre quaisquer duas transposições deste ciclo, possui, assim como o ciclo de três semitons, três transposições e uma estrutura simétrica. Esta escala também pode ser gerada removendo uma transposição deste ciclo da escala cromática, ou seja, a escala octatônica é o complemento cromático do ciclo de três semitons.

    As três transposições possíveis da escala octatônica geradas como resultado da combinação de duas transposiçõs de c3. Observe que em cada compasso temos o conteúdo de notas de uma escala octatônica, mas ordenado como um par de ciclos de terças menores.
    As três transposições da escala octatônica, tocadas como combinações de dois c3. Observe que, no áudio, cada escala é tocada como uma combinação de dois c3 e é seguida de uma pausa.

    Ciclo de quatro semitons (ditom)

    O ciclo de quatro semitons é idêntico ao acorde aumentado. Este ciclo possui quatro transposições e é um subconjunto do ciclo de dois semitons (que pode ser formado por dois ciclos de quatro semitons distando uma segunda maior ou uma quarta aumentada). O ciclo de quintas justas (7 semitons) pode ser dividido em quatro vozes, cada uma seguindo uma transposição do ciclo ou como quatro três tetracordes quintais construídos sobre as notas do ciclo.

    Transposições de c4.
    Transposições de c4
    c7 construído sobre c4.
    c7 construído sobe c4.

    Ele pode ser combinado mesmo pra formar três escalas diferentes: a hexatônica aumentada, a escala de tons inteiros e o terceiro modo de transposição limitada (Terceiro M.T.L. na imagem abaixo). Combinando um ciclo com o ciclo um semitom acima ou abaixo geramos a hexatônica aumentada; dois tons acima ou abaixo geramos a escala de tons inteiros. Combinando quaisquer três transposições, geramos o terceiro modo de transposição limitada – que também pode ser gerado removendo uma transposição do ciclo de 4 semitons da escala cromática, ou seja: o terceiro modo de transposição limitada é o complemento cromático deste ciclo.

    Combinação de c4 T0 e c4 T3 gerando a escala Hexatônica Aumentada. Observe que c4 T3 tem as mesmas notas que c4 T11 que estaria um semitom abaixo de c4 T0.
    Escala hexatônica aumentada tocada como combinação de c4 T0 e c4 T3 e depois como uma escala.
    Combinação de c4 T0 e c4 T3 para formar a escala de tons inteiros (c2)
    Escala de tons inteiros tocada como combinação de c4 T0 e c4 T2. Em seguida tocada como uma escala.
    Combinação de três transposições de c4 para formar o terceiro modo de transposição limitada (M.T.L.) descrito por Olivier Messiaen.
    Terceiro modo de transposição limitada tocado como combinação de três transposições de c4. Em seguida tocado como uma escala.

    Ciclo de seis semitons (tritom)

    O ciclo de seis semitons possui duas notas consistindo somente num trítono. Ele é um subconjunto dos ciclos de um, dois, três, quatro, cinco, sete, nove, dez e onze semitons e possui seis transposições. A princípio, este ciclo, consistindo de somente duas notas razoavelmente distantes, parece, em si, de pouco interesse; mas gostaria de levantar uma observação realizada por Olivier Messiaen em Técnica de Minha Linguagem Musical: 

    “Um ouvido muito apurado percebe claramente um Fá sustenido na ressonância natural de um Dó grave. Esse Fá sustenido possui uma atração em direção ao Dó, que se torna sua resolução natural. Estamos diante do primeiro intervalo a ser escolhido: a quarta aumentada descendente.” (Messiaen, 1944, p.31)

    E é curioso notar: ele realmente usa a quarta aumentada como resolução melódica ou como o enquadramento dentro do qual a progressão se dá. Exemplos simples podem ser encontrados na voz de Poèmes pour Mi, no primeiro movimento Les Corps glorieux (exemplo citado por ele mesmo no livro) e em basicamente qualquer melodia dele.

    O ciclo de seis semitons se torna mais interessante para a nossa discussão, entretanto, quando pensamos na combinação das 6 diferentes transposições que ele possui: de todos os ciclos ele é o que gera a maior variedade de estruturas quando combinado com suas transposições.

    Seis transposições de c6. Observe que o hipotético c6 T6, conteria as mesmas notas que T0.

    Para nomear essas estranhas formações, utilizarei a classificação de conjuntos da teoria pós-tonal criado por Allen Forte. Detalhar esta nomenclatura, a lógica os números de Forte e as outras práticas da teoria de conjuntos pós-tonal ficará para outro momento. Para este texto, só utilizarei a classificação para dar algum nome a essas estruturas. O importante é saber que ela é uma estrutura a-b onde a é o número de notas na estrutura e b é um ordenamento da lista. Por exemplo 5-35 – o equivalente na teoria de conjuntos da coleção pentatônica – é o trigésimo quinto conjunto dos conjuntos de cinco notas na lista de Forte. Alguns conjuntos possuem ainda uma notação extra: A ou B, onde A é a forma primária e B é a forma invertida.

    Há três resultantes possíveis da combinação de duas transposições do ciclo de seis semitons, todos os três simétricos. O primeiro, que resulta da combinação de um ciclo com outro ciclo a um semitom ou cinco semitons de distância, poderia ser interpretado como um acorde quartal construído por uma quarta aumentada, uma quarta justa e uma quarta aumentada. Seu número Forte é 4-9 e ele é um subconjunto da escala octatônica. O segundo, que resulta da combinação de um ciclo com outro ciclo a dois ou quatro semitons de distância, pode ser interpretado como um dominante com quinta diminuta.eu número Forte é 4-25 e é um subconjunto da escala de tons inteiros (ciclo de segundas maiores) e do terceiro modo de transposição (que discutimos anteriormente neste texto). O terceiro, que resulta da combinação de um ciclo com outro a uma terça menor de distância, forma o acorde de sétima diminuta (ciclo de terças menores) que discutimos anteriormente neste texto. Seu número Forte é 4-28.

    Combinação de duas transposições de c6 a um semitom de distância para formar 4-9.
    4-9 tocado como duas combinações de dois c6 a um semitom de distância, seguido de uma interpretação quartal.
    Combinação de duas transposições de c6 a um tom de distância formam 4-25, que pode ser interpretado como um acorde dominante com quinta diminuta.
    4-25 tocado como duas combinações de duas transposições de c6 a dois semitons de distância, seguido de sua interpretação como C7b5 em posição fechada.
    Combinação de duas transposições de C6 a três semitons de distância resultando em um ciclo de terças menores.
    Dois c6 a três semitons de distância formando 4-28. Ciclo de terças menores contendo o mesmo conteúdo de notas. C diminuto.

    Há quatro resultantes da combinação de três transposições do ciclo de seis semitons. Três ciclos separados por semitom geram o conjunto 6-7, o quinto modo de transposição limitada de Messiaen. Este conjunto pode ser pensado como dois tricordes quartais separados por um trítono – ou, em outra inversão, como dois acordes suspensos separados por um trítono. 

    Combinação de três transposições de c6 resultando em 6-7. Pode ser interpretado como dois tricordes quartais construídos sobre c6.
    6-7 tocado como três trítonos distando um semitom, seguido de como escala, seguido de uma interpretação como dois tricordes quartais e suas inversões como acordes suspenso.

    Três transposições do ciclo de seis semitons separados por um tom geram a escala de tons inteiros que já discutimos (6-35). As duas últimas combinações (6-30A e 6-30B) são peculiares: elas não são simétricas e, portanto, são inversíveis, sendo uma inversão da outra.

    Combinação de três c6 para formar as duas inversões de 6-30.
    6-30A tocado como três transposições de c6 e como escala seguido de 6-30B.

    Por inversão uma da outra quero dizer que elas possuem o mesmo padrão intervalar, mas em um caso ascendente e em outro caso descendente. As tríades maiores e menores, por exemplo, são inversão uma da outra – no sentido pós-tonal de inversão, que não deve ser confundido com o sentido tonal de inversões de um acorde. Começando em dó e ascendendo três e depois quatro semitons temos C Eb G – a tríade de dó maior; descendo três e depois quatro semitons temos C A F – a tríade de Fá menor. No caso de 6-30, o padrão é 1, 2, 3, 1, 2 semitons ascendentes no caso de 6-30A e descendentes no caso de 6-30B.

    Interessante notar que 6-30 (A e B) são subconjuntos da escala octatônica, cabem dentro de um intervalo de nove semitons – ou seja, podem estar interpolados em um ciclo de sextas maiores – e podem ser gerados por duas tríades (menores no caso de A, maiores no caso de B) distando seis semitons. Stravinsky, em Petrushka, utilizou regularmente 6-30B tocado como duas tríades maiores.

    6-30A construído como duas tríades menores construídas sobre c6. 6-30B construído como duas tríades maiores construídas sobre c6.
    6-30A tocado como duas tríades menores e 6-30B como duas tríades maiores.

    A combinação de quatro transposições do ciclo gera 3 conjuntos (8-9, 8-25 e 8-28), que, não coincidentemente, são os complementos cromáticos das combinações de 2 ciclos (4-9, 4-25 e 4-28). Os três também são, respectivamente o quarto, o sexto e o segundo modos de transposição limitada.

    Quatro transposições de c6 distando um semitom resultando em 8-9, que pode ser interpretado como dois acordes de sétima maior construídos sobre c6.
    8-9 tocado como quatro c6 a um semitom de distância, seguido de 8-9 tocado escalarmente e sua interpretação como Dmaj7 e Abmaj7.
    8-25 tocado como quatro c6 em T0, T1, T2 e T4, depois escalarmente e depois interpretado como C#mMaj7 e GmMaj7.
    Quatro transposições de c6 a T0, T1, T3 e T4 resultando em 8-28, a escala octatônica, que pode ser interpretado como dois tetracordes diminutos.
    8-28 tocado como quatro transposições de c6, escalarmente e como dois tetracordes diminutos.

    8-9 possui seis transposições, repete-se idêntico sobe o trítono e pode ser pensado como a combinação de dois acordes de sétima maior distando um trítono. 8-25 também possui seis transposições e pode ser pensado como uma combinação de dois acordes menores com sétima maior construídos sobre c6. 8-28, por fim, possui 3 transposições e pode ser pensado como uma combinação de dois tetracordes diminutos (c3).

    Por fim, há uma combinação de 5 transposições do ciclo de 6 semitons: 10-6, o sétimo modo de transposição limitada. Ele é gerado pela única forma de combinar as 5 transposições: sobre uma sequência de 5 semitons ou substraíndo uma transposição do ciclo de seis semitons da escala cromática. Duas características me chamam atenção: em primeiro lugar, ela contém tanto da escala de tons inteiros (ic2) quanto da escala octatônica (combinação de dois ic3) – e consequentemente os outros subconjuntos que discutimos em relação ao ic6; em segundo lugar, ela pode ser pensada como uma combinação de duas escalas pentatônicas distando um seis semitons.

    Cinco transposições de c6 resultando em 10-6, que pode ser interpretado como duas coleções pentatônicas construídas sobre c6.
    10-6 tocado como cinco transposições de c6, escalarmente e como duas pentatônicas maiores construídas sobre c6.

    A segunda qualidade, em especial, é útil porque essa resultante é tão cromaticamente saturada que é de pouca utilidade para pensar escalarmente ou ciclicamente, a menos que possamos construir outras lógicas sobre ela; e.g.: pensá-la como uma pentatônica sendo transformada por ciclo de seis semitons. No exemplo abaixo, abri as pentatônicas como dois acordes cuja sonoridade me agrada e circulei eles pelo ciclo, buscando abrir cada resultante seguindo um padrão ascendente e com movimento de vozes por grau conjunto. O resultado é uma harmonia meio quartal, mas bastante cromática.

    No sistema de cima: 10-6 como cois voicings pentatônicos. No sistema de baixo: uma progressão de voicings pentatônicos alternando entre as duas escalas pentatônicas que formam 10-6.

    Ciclos não-oitavantes

    Os ciclos não-oitavantes gerados por intervalos simples possuem uma relação direta com os ciclos oitavantes: à exceção dos ciclos de quarta e quintas justas (que são inversão um do outro e são ambos não-oitavantes), eles contém as mesmas notas dos ciclos oitavantes da mesma família de ciclos, mas retrógrados (tocados de trás pra frente). Isso porque, ainda que sejam intervalos diferentes, são inversões um dos outros e participam da mesma classe de intervalo. Um intervalo de 4 semitons ascendente é uma terça maior, descendente é uma sexta menor. Neste sentido, podemos pensar, por exemplo, o ciclo de 8 semitons como um ciclo de terças maiores retrógrado, mas tocado ascendentemente.

    Isso faz com que, em geral, os ciclos de 8, 9, 10 e 11 semitons possuam as mesmas qualidades que discutimos em relação aos ciclos de 4, 3, 2 e 1 semitons respectivamente. Para algumas aplicações, como a geração de padrões melódicos e escalas como as descritas por Slonimsky e outras estruturas sem repetição de oitava, pensá-los na versão original e não-oitavante faz mais sentido e gera um resultado diferente de identificá-lo com o ciclo oitavante; para outras aplicações, como progressões axiais, pensá-los como um ciclo oitavante retrógrado pode fazer mais sentido.

    Em Thesaurus of scales and melodic patterns, Nicolas Slonimsky descreve uma série de escalas e padrões melódicos construídos principalmente sobre ciclos intervalares como os discutidos até aqui. As notas do ciclo – que Slonisky descreve como divisões de uma quantidade de oitavas – formam os tons principais, sobre os quais três operações podem ser realizadas:

    Escalas e padrões melódicos são formados pelo processo de Interpolação, Infrapolação e Ultrapolação. A palavra Interpolação é de uso comum; aqui, ela significa a inserção de uma ou várias notas entre os tons principais. Infrapolação e Ultrapolação são termos criados. Infrapolação indica a adição de uma nota abaixo de um tom principal; Ultrapolação refere-se à adição de uma nota acima do próximo tom principal. A Infrapolação e a Ultrapolação resultam em uma mudança de direção, com a linha melódica progredindo em ziguezagues. Infrapolação, Interpolação e Ultrapolação podem ser combinadas livremente, resultando em formas hifenizadas: Infra-Interpolação, Infra-Ultrapolação e Infra-Inter-Ultrapolação.” (Slonimsky, 1947, p. ii)

    Algumas dessas operações resultam em escalas e estruturas que já discutimos – e.g.: por exemplo a interpolação de uma nota um tom acima de um ciclo de quatro semitons resulta na escala de tons inteiros (ciclo de dois semitons) e a interpolação de uma nota um semitom acima do ciclo de três semitons resulta na escala octatônica – enquanto outras resultam em ordenamentos específicos destas – e.g.: a interpolação de uma nota um tom acima de um tom principal e ultrapolação de uma nota uma terça maior acima do próximo resulta no terceiro modo de transposição limitada, como na imagem abaixo.

    Por outro lado, quando realizamos operações semelhantes em ciclos não-oitavantes, geramos escalas e padrões melódicos não oitavantes. No exemplo abaixo, o uma inter-ultrapolação sobre c8 gera uma coleção com as mesmas classes de notas que o segundo modo de transposição limitada, distribuídos ao longo de duas oitavas. 

    No exemplo abaixo, interpolei quatro notas em um ciclo de 9 semitons para gerar uma escala sem repetição de oitava com características dóricas (terça menor, sexta maior).

    No exemplo abaixo o ciclo de 4 semitons é interpolado no ciclo de 9 semitons:

    Há incontáveis possibilidades: melodias, padrões melódicos, escalas sem repetição de oitava, combinações de transposições e etc. Elas terão que ficar para outros textos. No momento, gostaria de passar ao último conjunto de ciclos: os ciclos de quarta e quinta.

    Os ciclos de Cinco e Sete semitons (Diatessarão e Diapente)

    Os ciclos de quarta e quinta justas também são retrógrado um do outro, mas nenhum dos dois cabe em uma oitava e, na verdade, ocupam, respectivamente, cinco e sete oitavas até se completar. Assim como os ciclos de segunda menor e sétima maior, os ciclos de quarta e quinta justas resultam numa distribuição específica da escala cromática. Para comprimi-los a uma oitava é preciso pensá-los como uma combinação de quintas e quartas ascendentes e descendentes.

    Como mencionei anteriormente, estes ciclos entretém relações com os ciclos de menor (por resultar no mesmo conteúdo de classes de notas: a escala cromática), o ciclo de segundas maiores (e sétimas menores, que resultam na escala de tons inteiros), o ciclo de terças menores e maiores. As escalas pentatônica e diatônica são versões truncadas dele (5 e 7 primeiros tons respectivamente). Mas é sua relação com o ciclo de segundas menores, através do ciclo de segundas maiores que me intriga e fornece algumas possibilidades de combinação.

    Um ciclo de quintas justas ascendente começando em dó, como notamos anteriormente, pode ser descrito como dois ciclos de segundas maiores intercalados e distando uma quinta justa. O ciclo de um semitom possui uma qualidade semelhante: ele pode ser descrito como dois ciclos de dois semitons distando um semitom de distância. Deste modo, se começarmos um ciclo de semitom e um ciclo de quintas justas eles serão descritos por dois ciclos de dois semitons, com um dos ciclos uma quarta aumentada de distância. Na imagem abaixo, é fácil de observar que a voz central contém c2 começando em dó – este ciclo é compartilhado por ambas. A voz superior contém c2 começando em G e a inferior começando em C#. Quando organizamos os ciclos c2 de modo a formar c1 e c7 temos uma progressão que resulta em um uníssono e um trítono a cada dois graus.

    O que me chama a atenção nisso é que podemos combinar uma progressão em c7 (ou c5) com uma progressão em c1 (ou c11, c1 descendente), para formar uma alternância entre duas estruturas. No exemplo abaixo (que Flô Menezes atribui, em A Apoteose de Schoenberg a Alban Berg), a voz inferior segue c5, enquanto as três vozes superiores (que formam um tricorde vienense, isso é, de baixo pra cima, uma quarta aumentada e uma quarta justa) seguem um c11, tocado como c1 descendente. O resultado é um dominante extendido alternando entre um acorde dominante com nona aumentada e um dominante com décima terceira até retornar ao ponto de partida.

    A mesma lógica funcionaria para qualquer outra estrutura superior e o resultado é menos formulaico do que parece. Cabe ao leitor, testar outras possibilidades

    Para concluir

    O legal dos ciclos intervalares é como eles nos fazem pensar diferentemente sobre espaços de notas. Mesmo no sistema tonal, a diferença aparece no movimento dentro de um ciclo – em especial o ciclo de quintas, por onde deslocam-se, distanciam-se e aproximam-se as diferentes tonalidades. No caso de um pensamento musical pós-tonal, a noção de ciclo nos convida a reconceber a ideia de um espaço de notas a partir da multipolaridade, da simultaneidade de forças iguais e contrárias para além de um dodecafonismo estrito. É que, como disse, a simetria dos ciclos intervalares impede que, a priori, se possa definir um centro tonal e e uma hierarquia intervalar: é preciso encarar cada nota em estado puro.

    Em textos posteriores, quero explorar alguns usos de ciclos intervalares: progressões axiais, sistemas multi-tônica, mais escalas não-octavantes e suas propriedades, padrões melódicos, escalas simétricas e modos de transposição limitada. Este texto já ficou longo demais com um simples sobrevôo e acredito que cada um destes tópicos rende mais um bocado de palavras.

    Referencias

    Kingstone, Alan James, and Barry Harris. The Barry Harris harmonic method for guitar. Jazzworkshop productions, 2006.

    Messiaen, Olivier. The technique of my musical language [trad. John Satterfield].

    Schillinger, Joseph. The Schillinger System of Musical Composition. New York: Da Capo Press, 1946.

    Slonimsky, Nicolas. Thesaurus of Scales and Melodic Patterns. New York: Schirmer Books, 1947.

    Straus, Joseph N. Introduction to post-tonal theory. WW Norton & Company, 2016.

    Susanni, Paolo; Elliott Antokoletz. Music and twentieth-century tonality: Harmonic progression based on modality and the interval cycles. Routledge, 2012.

    Yamaguchi, Masaya and David Demsey. John Coltrane Plays “Coltrane Changes”. Milwaukee: Hal Leonard, 2003.